STF. ADPF 850/DF

Tese Firmada: É vedada a utilização das emendas do relator-geral do orçamento com a finalidade de criar novas despesas ou de ampliar as programações previstas no projeto de lei orçamentária anual, uma vez que elas se destinam, exclusivamente, a corrigir erros e omissões (CF/1988, art. 166, § 3º, III, alínea “a”).

Questão Jurídica: Orçamento secreto: uso de emendas do relator para inclusão de novas despesas no projeto de lei orçamentária anual da União

Ementa: Arguição de descumprimento de preceito fundamental. “Orçamento secreto”. Despesas públicas resultantes de negociações ocultas entre o Executivo e sua base parlamentar de apoio no Congresso. Emendas do relator (classificadas pelo identificador orçamentário RP 9). Constatação objetiva da ocorrência de efetiva transgressão aos postulados republicanos da transparência, da publicidade e da impessoalidade no âmbito da gestão estatal dos recursos públicos, assim como do planejamento orçamentário e da responsabilidade na gestão fiscal. 1. As práticas institucionais e padrões de comportamento verificáveis objetivamente na esfera dos Poderes Públicos traduzem formas de atuação estatal subsumíveis à noção jurídica de atos de poder (Lei nº 9.882/99, art. 1º, caput). Precedentes. 2. A jurisprudência desta Corte reconhece possível a utilização da arguição de descumprimento para impugnar omissões sistêmicas e práticas institucionais dos Poderes Públicos, sempre que – diante da inexistência de outro meio capaz de sanar a controvérsia de forma geral, imediata, eficaz – os atos impugnados, transcendendo interesses meramente individuais, ostentam os atributos da generalidade, da impessoalidade e da abstração, justificando a intervenção judicial para a tutela de direitos fundamentais ou de interesses políticos e jurídicos socialmente relevantes. Precedentes. 3. As emendas parlamentares ao orçamento possuem autorização constitucional (CF, art. 166) e objetivam, em princípio, viabilizar aos congressistas a oportunidade de atender diretamente as reivindicações mais concretas e urgentes da população que representam, contemplando a dotação financeira necessária ao atendimento de suas necessidades. 4. A experiência histórica, no entanto, comprova que as emendas orçamentárias têm se distanciado, cada vez mais, do seu objetivo original de representar instrumento legítimo de aprimoramento das políticas públicas nacionais e regionais, para servirem ao proveito de interesses de cunho privatístico e eleitoral, muitas vezes envolvendo esquemas de corrupção e desvio de recursos públicos de amplitude nacional, tal como apurado pelos órgãos de investigação parlamentar do Congresso Nacional em diversas ocasiões (CPMI do Esquema PC Farias, do Orçamento, das Ambulâncias, entre outros). 5. O elevado coeficiente de discricionariedade existente na definição dos programas e ações estatais, assim com na escolha dos gastos necessários a sua execução, acentua ainda mais o ônus pertencente aos Poderes Públicos de observarem o dever de transparência na execução do orçamento e a obrigatoriedade da divulgação de informações completas, precisas, claras e sinceras quanto ao seu conteúdo, de modo a viabilizar a atuação efetiva e oportuna dos órgãos de controle administrativo interno, dos órgãos de fiscalização externa (Ministério Público, Tribunais de Contas e Poder Judiciário) e da vigilância social exercida pelas entidades da sociedade civil e pelos cidadãos em geral. 6. Chama-se de “orçamento secreto” o esquema de barganha política por meio do qual o Executivo favorece os integrantes de sua base parlamentar mediante a liberação de emendas orçamentárias em troca de apoio legislativo no Congresso Nacional, valendo-se do instrumento das emendas do relator para ocultar a identidade dos parlamentares envolvidos e a quantia (cota ou quinhão) que lhe cabe na partilha informal do orçamento. 7. As emendas do relator, além de não possuírem previsão constitucional, operam com base na lógica da ocultação dos efetivos requerentes da despesa, mediante a utilização de rubrica orçamentária única (RP 9), por meio da qual todas as despesas nela previstas são atribuídas, indiscriminadamente, à pessoa do Relator-Geral do orçamento, que atua como figura interposta entre parlamentares incógnitos e o orçamento público federal. 8. Também o destino final dos recursos alocados sob a rubrica RP 9 (emendas do relator) acha-se recoberto por um manto de névoas. Cuida-se de categoria orçamentária para a qual se destinam elevadas quantias (mais de R$ 53 bilhões entre 2020 e 2022) vinculadas a finalidades genéricas, vagas e ambíguas, opondo-se frontalmente a qualquer tentativa de conformação do processo orçamentário às diretrizes constitucionais do planejamento, da transparência e da responsabilidade fiscal. 9. A captura do orçamento público federal em favor das prioridades eleitoreiras e interesses paroquiais dos congressistas representa grave risco à capacidade institucional do Estado de realizar seus objetivos fundamentais (CF, art. 3º), especialmente em decorrência da pulverização dos investimentos públicos, da precarização do planejamento estratégico, da perda progressiva da eficiência e da economia de escala, tudo em detrimento do interesse público. 10. A partilha secreta do orçamento público operada por meio das emendas do relator configura prática institucional inadmissível diante de uma ordem constitucional fundada no primado do ideal republicano, no predomínio dos valores democráticos e no reconhecimento da soberania popular (CF, art. 1º); inaceitável em face dos postulados constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (CF, art. 37, caput); inconciliável com o planejamento orçamentário (CF, art. 166) e com a responsabilidade na gestão fiscal (LC nº 101/2000; além de incompatível com o direito fundamental a informação (CF, art. 5º, XXXIII) e com as diretrizes que informam os princípios da máxima divulgação, da transparência ativa, da acessibilidade das informações, do fomento à cultura da transparência e do controle social (CF, arts. 5º, XXXIII, “a” e “b”, 37, caput e § 3º, II, 165-A e Lei nº 12.527/2011, art. 3º, I a V). 11. ADPFs 850 e 851 integralmente conhecidas e ADPFs 854 e 1014 conhecidas em parte. No mérito, pedidos julgados procedentes, nos termos do voto da Relatora. (ADPF 850, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-04-2023 PUBLIC 28-04-2023)