STJ. APn 989-DF

Enunciado: O crime de lavagem de capitais tipifica exatamente a conduta de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Nota-se que não há falar em ausência de autonomia entre a corrupção passiva e a lavagem de dinheiro, com a consunção do segundo delito pelo primeiro. Isso porque não é possível ao agente, a pretexto de não ser punido pelo crime anterior ou com o fim de tornar seguro o seu produto, praticar novas infrações penais, lesando outros bens jurídicos. Em verdade, a excludente de culpabilidade demonstra-se totalmente incompatível com o delito de lavagem de dinheiro, uma vez que este não se destina à proteção de bens jurídicos, mas sim, entre outras finalidades, a assegurar o próprio proveito econômico obtido com a prática do crime antecedente. Em outras palavras, embora o tipo penal constante no art. 317 do CP preveja a possibilidade do recebimento da vantagem indevida de forma indireta, quando o agente pratica conduta dissimulada que lhe permita não apenas a posse do recurso ilícito, mas também sirva para conferir-lhe aura de legalidade, imprimindo-lhe feição de licitude, deve responder pelo crime de lavagem de dinheiro. Embora a tipificação da lavagem de capitais dependa da existência de um crime antecedente, é possível a autolavagem, isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem, desde que sejam demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do primeiro crime, circunstância em que não ocorrerá o fenômeno da consunção. Com efeito, a autolavagem (self laundering/autolavado) merece reprimenda estatal, na medida em que o autor do crime antecedente, já com a posse do proveito do crime, poderia simplesmente utilizar-se dos bens e valores à sua disposição, mas reinicia a prática de uma série de condutas típicas, a imprimir a aparência de licitude do recurso obtido com a prática da infração penal anterior. Dessa forma, se for confirmado, a partir do devido processo legal e da consequente disposição de todos os meios de prova ao alvitre das partes, notoriamente o contraditório e a ampla defesa, que o denunciado enfunou ares de legalidade ao dinheiro recebido e transferido, estará configurado o crime de lavagem de capitais.

Tese Firmada: Na autolavagem não ocorre a consunção entre a corrupção passiva e a lavagem de dinheiro.

Questão Jurídica: Crime de lavagem de capitais e corrupção passiva. Tipicidade formal. Autolavagem. Consunção. Inaplicabilidade.

Ementa: AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DENÚNCIA PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. POSSÍVEL EXISTÊNCIA DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA INSTALADA NO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 1ª REGIÃO. PRÁTICA DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO ATIVA E PASSIVA, PECULATO E LAVAGEM DE ATIVOS. MEDIDAS DE BUSCA E APREENSÃO. LEGALIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, II, E § 6º, DA LEI 8.906/94. NÃO OCORRÊNCIA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL REALIZADA PELO PARQUET. POSSIBILIDADE. FISHING EXPEDITION. NÃO OCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. INICIAL ACUSATÓRIA APRESENTADA NOS TERMOS DO ART. 41 DO CPP. DENÚNCIA ESPECÍFICA. PRESENÇA DE JUSTA CAUSA. TIPICIDADE FORMAL DO CRIME DE PERTENCIMENTO À ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. DISTINÇÃO DO DELITO DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 288 DO CP). TIPICIDADE FORMAL DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS. AUTOLAVAGEM. CONSUNÇÃO. MATÉRIA DE PROVA. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. TEMÁTICA PREJUDICADA. AFASTAMENTO CAUTELAR DOS INVESTIGADOS DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA. RATIFICAÇÃO PELA CORTE SUPERIOR DO STJ. 1- Denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, em 2/3/2021, contra 18 (dezoito) indiciados pela prática de crimes diversos, especialmente contra a Administração Pública, envolvendo, entre outros codenunciados, 4 (quatro) Desembargadores do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Autos conclusos em 16/11/2021. 2- O propósito da presente fase procedimental consiste em dizer se é hígida a hipótese fática que culminou no ajuizamento da presente ação penal, originada de indícios da prática de infrações por autoridades do Poder Judiciário Trabalhista do Estado do Rio de Janeiro, com foro privilegiado no STJ, a fim de recepcionar-se ou não a peça acusatória, quanto à imputação dos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de ativos e pertencimento à organização criminosa. 3- Oferecida a denúncia, o Tribunal poderá rejeitá-la, quando: a) for manifestamente inepta; b) ausente pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou c) faltar justa causa, nos termos do art. 395 do CPP. Caso não estejam presentes esses elementos, a denúncia deverá ser recebida. 4- Ocorre a inépcia da denúncia quando sua deficiência resultar em prejuízo ao exercício da ampla defesa do acusado, ante a ausência de descrição da conduta criminosa, da imputação de fatos determinados, ou quando da exposição circunstancial não resultar logicamente a conclusão. 5- Na hipótese dos autos, a denúncia narra que os acusados, Desembargadores do Trabalho da 1ª Região, em inúmeras oportunidades, teriam recebido vantagens indevidas em razão do cargo, para praticar atos de ofício, com violação do dever funcional, para o fim de incluir diversas sociedades empresárias no Plano Especial de Execução da Justiça do Trabalho. 6- As medidas de busca e apreensão não foram ordenadas apenas com base na palavra advinda da colaboração premiada, estando lastreadas em dados concretos e absolutamente independentes, com inúmeros elementos de informação, tais como depoimentos compartilhados, relatórios de inteligência financeira, mensagens em aplicativos, entre outros documentos, de modo que a delação premiada somente veio renovar, ainda na esfera indiciária, a possível veracidade das provas apresentadas. 7- A mens legis da proteção conferida pelo art. 7º, II, e § 6º, da Lei 8.906/94 remanesce em favor da atividade da advocacia e do sigilo na relação do advogado com o cliente, e não como obstáculo à investigação de crimes pessoais. 8- É cediço que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 593.727/MG, assentou ser legítima a investigação de natureza penal realizada pelo Parquet. 9- Por meio de simples leitura da íntegra dos autos do processo, verifica-se que não há, por parte do MPF, qualquer anátema irrogado às escuras, com o escopo de propelir elementos indiciários, pescando provas a subsidiar futura acusação (fishing expedition). 10- Os denunciados tiveram acesso à integralidade do teor da acusação, dos documentos e das provas contra si produzidos, não subsistindo a tese de cerceamento de defesa. 11- Pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal, o oferecimento de denúncia em desfavor de alguns investigados em inquérito policial não gera arquivamento implícito com relação aos não denunciados, para os quais os elementos probatórios se mostram, inicialmente, insuficientes. O Parquet, como dominus litis, pode aditar a denúncia, até a sentença final, para a inclusão de novos réus, ou, ainda, oferecer nova denúncia a qualquer tempo. 12- A denúncia não é genérica, pois os fatos e as consequências penais foram esmiuçados detalhadamente na inicial, com a respectiva transcrição do fato criminoso e das circunstâncias, a qualificação dos acusados e a classificação do crime, nos moldes exigidos pelo art. 41 do CPP, não subsistindo a tese de inépcia. 13- A ocorrência dos fatos narrados na denúncia está indicada, nos autos, por inúmeros elementos indiciários - oriundos de buscas e apreensões, quebras de sigilo e outras medidas investigativas -, a justificar a presença de justa causa para a deflagração da ação penal. Além disso, tradicionalmente, a justa causa é analisada apenas sob a ótica retrospectiva, voltada para o passado, com vista a quais elementos de informação foram obtidos na investigação preliminar já realizada. Todavia, a justa causa também deve ser apreciada sob uma ótica prospectiva, com o olhar para o futuro, para a instrução que será realizada, de modo que se afigura possível incremento probatório que possa levar ao fortalecimento do estado de simples probabilidade em que o juiz se encontra quando do recebimento da denúncia. 14- As condutas declinadas pelo Parquet cristalizam indícios de formação de organização criminosa, visto que: a) foram denunciados 18 (dezoito) agentes que integrariam a organização criminosa; b) havia uma estrutura bem ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas; c) as vantagens teriam sido consubstanciadas pelo pagamento de propina; e d) os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro possuem penas máximas superiores a 4 (quatro) anos. 15- Na associação criminosa (art. 288 do CP), não se faz necessária a existência de estrutura organizacional complexa, bastando associação incipiente. A pedra de toque para a distinção entre a associação e a organização, é que, nesta última, há uma dimensão institucional para o cometimento do crime. 16- Embora a tipificação da lavagem de capitais dependa da existência de um crime antecedente, é possível a autolavagem, isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem, desde que sejam demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do primeiro crime, circunstância em que não ocorrerá o fenômeno da consunção. 17- A verificação da efetiva prática de condutas tendentes a acobertar a origem ilícita de dinheiro, com o propósito de emprestar-lhe a aparência da licitude, é matéria que depende de provas e deve ser objeto da instrução no curso da ação penal. 18- Os denunciados encontravam-se em prisão domiciliar, cuja manutenção foi ratificada no julgamento da Questão de Ordem no PePrPr 4/DF, julgado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em 16/6/2021. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus em favor dos quatro investigados, revogando as respectivas prisões domiciliares, de forma que o tema em epígrafe resta prejudicado. 19- Compulsando os autos, verifica-se que as condutas narradas pelo MPF - mobilizado por fortes elementos indiciários -, ante a natureza e a gravidade dos fatos que lhes são imputados, evidenciam a incompatibilidade da manutenção nos cargos públicos ocupados, em vista da necessidade de garantia da ordem pública. 20- Os investigados, com efeito, estão sendo denunciados pela prática dos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de ativos e pertencimento à organização criminosa, acusados de negociar vantagem ilícita e, em troca, proferir decisões judiciais em favor de outros corruptores. Assim, deixá-los no mesmo ambiente em que acusados de crime gravíssimo, com características de venalidade, atentaria contra princípios elementares de ordem pública, razão suficiente para esta Corte Superior manter o afastamento das funções, a fim de de resguardar a imagem, a moralidade e o funcionamento independente e imparcial do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. 21- Dessa forma, a Corte Especial do STJ determina o afastamento dos investigados das referidas funções durante o período de 1 (ano), contado a partir de hoje, dia 16/2/2022, de modo que, antes do término do referido lapso, esta Corte volte a se reunir, com o fim de apreciar a situação em concreto e determinar, se for o caso, novas medidas cabíveis. 22- Preliminares rejeitadas. Denúncia recebida. (STJ. APn 989-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 16/02/2022, DJe 22/02/2022 - Publicado no Informativo nº 726)