STJ. HC 663.055-MT

Enunciado: Inicialmente, é preciso fazer uma distinção entre autorização para ingressar em domicílio a fim de efetuar uma prisão e autorização para realizar busca domiciliar à procura de drogas ou outros objetos. Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência. É o que se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência". Ora, se mesmo de posse de um mandado de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, o executor da ordem deve se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual se admitiu a excepcional restrição do direito fundamental à intimidade, com muito mais razão isso deve ser respeitado quando o ingresso em domicílio ocorrer sem prévio respaldo da autoridade judicial competente (terceiro imparcial e desinteressado), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade. Vale dizer, admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition). Dois exemplos bem ilustram a questão. Imagine-se que, no decorrer de uma investigação pela prática dos crimes de furto e receptação, a autoridade policial represente pela concessão de mandado de busca e apreensão, a fim de recuperar um celular subtraído, cujo localizador (GPS) aponte estar em determinada moradia. Deferida a ordem para a procura do aparelho, a polícia, por ocasião do cumprimento da diligência, aproveita a oportunidade para levar cães farejadores com o objetivo de verificar a possível existência de drogas no local, as quais acabam sendo encontradas. Pense-se, ainda, na situação em que uma motocicleta é roubada e tem início perseguição policial aos assaltantes, os quais se refugiam em casa. Como decorrência do flagrante delito de roubo, os policiais ingressam no local, efetuam a prisão e apreendem o veículo subtraído. Na sequência, decidem aproveitar o fato de já estarem dentro do imóvel para procurar substâncias entorpecentes. Em ambas as situações hipotéticas trazidas, conquanto seja perfeitamente lícito o ingresso em domicílio, é ilegal a apreensão das drogas, por não haver sido precedida de justa causa quanto à sua existência e por não decorrer de mero encontro fortuito - esse admissível - mas sim de manifesto desvio de finalidade no cumprimento do ato, o qual, no primeiro caso, se limitava a autorizar o ingresso para a recuperação do celular subtraído; no segundo, apenas para efetuar a prisão do roubador e recuperar a motocicleta subtraída. Desse modo, é ilícita a prova colhida em caso de desvio de finalidade após o ingresso em domicílio, seja no cumprimento de mandado de prisão ou de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de ingresso sem prévia autorização judicial, como ocorre em situação de flagrante delito. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.

Tese Firmada: Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade.

Questão Jurídica: Domicílio. Expressão do direito à intimidade. Asilo inviolável. Exceções constitucionais. Interpretação restritiva. Ausência de fundadas razões. Desvio de finalidade e fishing expedition. Nulidade das provas obtidas.

Ementa: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS, PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO E FALSA IDENTIDADE. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. DESVIO DE FINALIDADE E FISHING EXPEDITION. AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO VÁLIDO DO MORADOR. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. 2. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito. 3. Por ocasião do julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito; b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada; c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação; d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo; e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência. 4. Sobre a gravação audiovisual, o plenário do Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 ("ADPF das Favelas"), reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros, que "o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos". 5. Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência". 6. É ilícita a prova colhida em caso de desvio de finalidade após o ingresso em domicílio, seja no cumprimento de mandado de prisão ou de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de ingresso sem prévia autorização judicial, como ocorre em situação de flagrante delito. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas. 7. Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade. 8. Segundo Alexandre Morais da Rosa, "Fishing Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém. [É] a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade" (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390). 9. Sobre o desvio de finalidade no Direito Administrativo, Celso Antonio Bandeira de Mello ensina: "Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício  denominado 'desvio de poder' ou 'desvio de finalidade'  são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei" (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 106). 10. No caso dos autos, o ingresso em domicílio foi amparado na possível prática de crime de falsa identidade, na existência de mandado de prisão e na suposta autorização da esposa do acusado para a realização das buscas. 10.1 O primeiro fundamento - crime de falsa identidade - não justificava a entrada na casa do réu, porque, no momento em que ingressaram no lar, os militares ainda não sabiam que o acusado havia fornecido anteriormente à guarnição os dados pessoais do seu irmão, o que somente depois veio a ser constatado. Não existia, portanto, situação fática, conhecida pelos policiais, a legitimar o ingresso domiciliar para efetuar-se a prisão do paciente por flagrante do crime de falsa identidade, porquanto nem sequer tinham os agentes públicos conhecimento da ocorrência de tal delito na ocasião. 10.2 No tocante ao segundo fundamento, releva notar que, além de não haver sido seguido o procedimento legal previsto no art. 293 do CPP, não se sabia - com segurança - se o réu estava na casa, visto que não fugiu da guarnição para dentro do imóvel com acompanhamento imediato em seu encalço; na verdade, o acusado tomou rumo ignorado, com notícia de que provavelmente estaria escondido dentro do cemitério, mas os agentes foram até a residência dele "colher mais informações". 10.3 Mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para captura do acusado - em cumprimento ao mandado de prisão ou até por eventual flagrante do crime de falsa identidade -, a partir das premissas teóricas acima fundadas, nota-se, com clareza, a ocorrência de desvirtuamento da finalidade no cumprimento do ato. Isso porque os objetos ilícitos (drogas e uma munição calibre .32) foram apreendidos no chão de um dos quartos, dentro de uma caixa de papelão, a evidenciar que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo réu - certamente portador de dimensões físicas muito superiores às do referido recipiente -, mas sim verdadeira pescaria probatória dentro do lar, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturar o paciente. 10.4 Por fim, quanto ao último fundamento, as regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que a esposa do paciente - adolescente de apenas 16 anos de idade - teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso no domicílio do casal, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em desfavor de seu cônjuge. Ademais, não se demonstrou preocupação em documentar esse suposto consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo. 10.5 A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela derivados, porque decorrentes diretamente dessa diligência policial. É preciso ressalvar, contudo, que a condenação pelo crime do art. 307 do CP (falsa identidade) não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas a partir da invasão de domicílio, eis que a prática do delito, ao que consta, foi anterior ao ingresso dos agentes no lar do acusado. 11. Ordem parcialmente concedida para reconhecer a ilicitude das provas obtidas a partir da violação do domicílio do acusado, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo das imputações relativas aos crimes do art. 33, caput , da Lei n. 11.343/2006 e 14 da Lei n. 10.826/2003. (STJ. HC 663.055-MT, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, SextaTurma, por unanimidade, julgado em 22/03/2022 - Publicado no Informativo nº 731)