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STJ. AgInt na Pet no REsp 1.586.943-SC
Enunciado: De pronto, deve-se afastar qualquer interpretação da lei que transfira às entidades públicas os poderes do titular do direito, emasculando-o. Mesmo quando atua por meio da substituição processual, o MPF não usurpa nem anula a titularidade dos índios sobre seus direitos. Tal conclusão decorre do art. 232 da CF, "os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo." A norma é taxativa: os índios e suas comunidades são os legitimados para as causas, pelo motivo mais elementar de também serem os titulares dos direitos nelas discutidas. É evidentemente a lógica que informa todo o sistema jurídico brasileiro. Como proteção adicional dos direitos dos indígenas, a Constituição exige a presença do MPF, nas causas em que se debaterem seus direitos. A imposição constitucional atende ao imperativo de que os índios nem sempre estão em condições sociológicas de aquilatar as implicações de processos em seus direitos, e nisso não diferem tanto dos demais leigos em direito, malgrado disponham das condições intelectuais, morais e psicológicas para se inteirar do assunto, se devidamente esclarecidos a respeito. O problema está em que todo o processo judicial se desenvolve no universo de sentido europeu, que muitas vezes é estranho ou apenas superficialmente conhecido pelas comunidades indígenas. Caso as relações fossem inversas, isto é, se nossa sociedade ainda se pautasse pelo código de sentido indígena, seríamos nós, os especialistas no direito nos demais ramos do conhecimento europeu, que necessitaríamos de explicações antropológicas e sociológicas para a compreensão do País. Outro problema parece facilmente identificável na tese contrária e consiste numa leitura, data venia, apressada das normas legais de regência do caso. Assim, do fato de o MPF ser o titular de função teleologicamente preordenada à defesa dos direitos dos índios, rigorosamente nada se segue acerca da legitimidade deles para a defesa de seus próprios direitos. Do fato de "A" ter o direito ao aforamento de certa ação não se pode afirmar nada a respeito da prerrogativa de "B" fazê-lo. O contrário só encontraria base caso a norma atribuísse competência "exclusiva" ao MPF, com o consequente alijamento dos índios. Mas, como visto, o art. 232 da CF adotou a solução inversa, ao fazer coincidir a titularidade do direito material com a legitimação e a capacidade processuais dos índios. Portanto, o fato de o MPF participar de demanda nada diz sobre o pressuposto básico de validade de qualquer processo: citar-se o titular do direito cuja existência se quer negar.
Tese Firmada: A comunidade indígena cuja posse fundiária é questionada em ação de nulidade de demarcação tem o direito subjetivo de ser ouvida no processo, na qualidade de litisconsorte passivo necessário.
Questão Jurídica: Nulidade de processo de demarcação. Discussão da posse indígena de terras. Litisconsórcio passivo necessário. Comunidade indígena. Funai. MPF.
Ementa: INDÍGENA E PROCESSO CIVIL. INTENÇÃO DE NULIDADE DO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO. DISCUSSÃO DA POSSE INDÍGENA DE TERRAS. IMPERATIVO DA FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM A COMUNIDADE INDÍGENA, SEM PREJUÍZO DA ATUAÇÃO DA FUNAI E DO MPF NA CAUSA. NULIDADE DO PROCESSO. RETORNO DOS AUTOS À INSTÂNCIA DE PRIMEIRO GRAU PARA MANIFESTAÇÃO DOS ÍNDIOS. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. 1. Cuida-se de Petição dos indígenas e de Agravos Internos (dos não índios e do Estado de Santa Catarina) contra decisum que deferiu o ingresso da Comunidade Indígena no feito, com retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que lá se analisem suas alegações. Assim, de um lado, a decisão guerreada reconheceu que a comunidade indígena cuja posse fundiária é questionada tem o direito subjetivo de ser ouvida no processo, na qualidade de litisconsorte passivo necessário. De outro, anulou-se o processo para que o Tribunal recorrido se manifeste acerca de questões postas pela comunidade indígena. Os expedientes serão julgados conjuntamente. 2. Os Agravos Internos dos particulares e do Estado de Santa Catarina defendem, em suma, que a comunidade indígena deve ser ouvida na qualidade de assistente simples, de sorte que o julgamento do Recurso Especial deve prosseguir. Alegam os agravantes que o caráter de assistência simples da participação da comunidade no processo apoia-se no fato de que os indígenas teriam a Funai e o MPF a falarem por si no processo, de modo que sua presença nele seria dispensável ou, ao menos, meramente facultativa. DESNECESSIDADE DE SOBRESTAMENTO 3. Foi interposta Petição pelos não índios, na qual pleiteiam o sobrestamento do feito, com espeque em decisum do STF no RE 1.017.365/SC. Cita-se a justificativa do Ministro Edson Fachin: "DECISÃO: Por meio de Petição em eDOC 199, deduzida no bojo de pedido de tutela provisória incidental, a Comunidade Indígena Xokleng da Terra Indígena Ibirama La Klaño e diversos amici curiae admitidos no pleito requerem que venha este Relator a 'determinar a suspensão de todos os processos judiciais em curso, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações até julgamento final da Repercussão Geral, nos termos do art. 1.035, §5º do CPC excluindo-se as ações judiciais movidas com a finalidade de reconhecer e efetivar os direitos territoriais dos povos indígenas'. (...) A manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agravam a situação dos indígenas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus.(.. .) A Peticionária (indígena) refere-se à situação dos indígenas em face à pandemia relativa ao coronavírus (COVID-19), a impedir as decisões que imponham reintegrações de posse nesse período". 4. Considerando que o comando do STF visava proteger os índios de decisões que viessem a determinar a retirada de suas terras, entende-se que a presente Petição dos particulares não visa salvaguardar o mesmo intento. Logo, indefere-se o pleito neste momento processual, haja vista que ora se julga Agravo Interno de Petição de ingresso da comunidade indígena na causa e Petição de anulação do processo de demarcação. 5. Por outro lado, o presente caso envolve incidente de nulidade absoluta em função da inexistência de citação da litisconsorte. Daí que o julgamento não tem impedimento para continuidade, já que versa acerca da matéria não controvertida e não se trata de mérito, tal qual conhecido no RE-RG 1.017.365, pelo STF. Nesse sentido, há precedentes do STF: decisões recentes na AR 2.750, da relatoria da Ministra Rosa Weber - esta referendada no Plenário do STF; AR 2756, da relatoria da Ministra Cármen Lúcia; SR 2.759, da relatoria do Ministro Roberto Barroso; e AR 2766, da relatoria do Ministro Edson Fachin; ARE 1.301.154, da relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, DJ 22.1.2021. CONTEXTUALIZAÇÃO DA CAUSA 6. Discute-se nos autos a validade da Portaria 795, de 1º de abril de 2007, do Ministério da Justiça, que declara como sendo de posse permanente do Grupo Indígena Kaingang a Terra Indígena Toldo Pinhal, situada nos Municípios de Seara, Paial e Arvoredo, Estado de Santa Catarina. 7. Os autores ajuizaram Ação Anulatória contra a Funai e a União, pretendendo a declaração de nulidade da Portaria 795/2007 e de todos os atos administrativos tendentes à alteração dos limites da reserva indígena Toldo Pinhal. Em caráter sucessivo, pleitearam a condenação das rés ao pagamento de indenização pelo valor da terra nua e das benfeitorias situadas em suas propriedades. 8. Nesses termos, qualquer decisão proferida no presente feito tem o potencial de atingir a esfera de direitos dos nativos da etnia Kaingang relativamente às suas terras de ocupação tradicional, ou seja, ao seu direito de "posse permanente", de modo que devem integrá-lo na condição de litisconsorte necessário. INVALIDADE DA PREMISSA DE QUE A PRESENÇA DA FUNAI E DO MPF NA CAUSA BASTA PARA A REGULARIDADE DO PROCESSO 9. Deve-se afastar qualquer interpretação da lei que transfira às entidades públicas poderes do titular do direito, emasculando-o. Mesmo quando atua por meio da substituição processual, o MPF não usurpa nem anula a titularidade dos índios sobre seus direitos. Tal conclusão decorre do art. 232 da CF, curiosamente transcrito no Recurso dos particulares como se lhes secundasse a tese. Dá-se bem o contrário. Para verificá-lo, basta não muito mais que rememorar seus termos: "os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo". 10. O contrário só encontraria base caso a norma atribuísse competência "exclusiva" ao MPF, com o consequente alijamento desses nativos. Mas, como visto, o art. 232 da CF adotou a solução inversa, ao fazer coincidir a titularidade do direito material com a legitimação e a capacidade processuais dos índios. Portanto, o fato de o MPF ter participado desta demanda nada diz sobre o pressuposto básico de validade de qualquer processo: citar-se o titular do direito cuja existência se quer negar. 11. O cerne dessas razões determina, mutatis mutandis, igual solução quanto à Funai. O Agravo Interno entende que o art. 35 da Lei 6.001/1973 - o Estatuto do Índio - teria efeitos convalidantes do processo, ao dispor que "cabe ao órgão federal de assistência ao índio a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas". Em suposto abono da conclusão, cita-se ainda o art. 11-B, § 6º, da Lei 9.028/1995, assim concebido: "a Procuradoria-Geral da Fundação Nacional do Índio permanece responsável pelas atividades judiciais que, de interesse individual ou coletivo dos índios, não se confundam com a representação judicial da União". O argumento tem dois defeitos estruturais a impedir-lhe o endosso. 12. Além disso, a atribuição da legitimidade e capacidade processuais aos índios decorre da letra expressa do art. 232 da CF, de modo que as leis mencionadas nada poderiam estabelecer em sentido contrário. Nenhuma lei ordinária poderia restringir o direito dos índios pelo expediente oblíquo de atribuir, com exclusividade, a órgãos públicos o poder da defesa de seus direitos em Juízo. 13. Em rigor, o argumento de que a presença da Advocacia de Estado na causa torna expletiva a participação da comunidade indígena no processo é a volta sub-reptícia da curatela dos índios, no âmbito Judiciário, que o art. 232 da CF baniu. Todos os indígenas do País ficariam assim rebaixados a incapazes. 14. Portanto, em não tendo ocorrido a defesa dos índios até o presente momento, por culpa alheia, incorrendo em grave prejuízo de difícil ou impossível reparação, cabe o pedido de ingresso na atual fase, bem como a nulidade de todo o processo ou de pelo menos dos atos decisórios - e que isso force o sistema de justiça do Brasil a reconhecer definitivamente os índios como sujeitos de direitos. 15. Ainda que acidentalmente, a tese dos agravantes priva os índios da qualidade de sujeitos do processo, rebaixando-os a objetos dele, na medida em que os submetem ao risco de ter seu direito subjetivo anulado por meio de decisão que não lhes garante igualdade de condições no litígio com seus adversários. Estivesse o direito patrimonial mais fútil em causa, como o relativo a bens voluptuários, ninguém negaria a qualidade de parte integral nela - litisconsorte - à pessoa que pudesse ser afetada pela decisão, desde o início da causa. Como está em discussão o direito à posse indígena, não basta que seu titular receba o processo no estado em que se encontra. PETIÇÃO DA COMUNIDADE INDÍGENA 16. Considerando as particularidades do caso concreto, entende-se desnecessária a anulação do processo a partir da contestação, haja vista a inexistência de prejuízo. Ora, só ocorreu prejuízo para a comunidade indígena a partir do momento em que ela não foi intimada da sentença de primeiro grau. 17. Dessarte, o processo deve ser anulado a partir da intimação da sentença, de modo que a parte autora possa complementar seu Recurso de Apelação contra a sentença de improcedência do pedido (em razão do ingresso de litisconsorte unitário) e, na sequência, possa a comunidade indígena apresentar as contrarrazões da Apelação. CONCLUSÃO 18. Agravos Internos dos não índios e do Estado de Santa Catarina não providos, e Petição dos indígenas parcialmente deferida, para que a anulação do processo limite-se à fase de intimação da sentença. (STJ. AgInt na Pet no REsp 1.586.943-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 17.05.2022 - Publicado no Informativo nº 737)