STJ. RMS 58.785-MS

Enunciado: A opção pela via corretiva mandamental somente se mostrará procedimentalmente adequada se os fatos que alicerçarem tal direito puderem ser comprovados de plano e de forma incontestável, mediante a apresentação de prova documental trazida já com a petição inicial. No caso, o candidato havia se declarado pardo quando da inscrição no certame. Todavia, consoante o tino dos membros da comissão posteriormente designada para a pessoal conferência dessa informação, a condição de pardo do impetrante restou por eles recusada, mesmo após a apreciação de pertinente recurso administrativo, então instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos dermatologistas. Presente esse contexto, emerge a inadequação da via eleita, ao menos por duas fortes razões. Em primeiro lugar, o parecer emitido pela Comissão examinadora, quanto ao fenótipo do candidato, ostenta, em princípio, natureza de declaração oficial, por isso dotada de fé pública, razão pela qual não pode ser infirmada senão mediante qualificada e robusta contraprova. Outrossim, a dilação probatória é providência sabidamente incompatível com a via do mandado de segurança, o que inibe a pretensão autoral de desconstituir, dentro do próprio writ, a conclusão a que chegaram os avaliadores. Em segundo lugar, nas alegações recursais, o impetrante qualifica como "subjetiva" a avaliação levada a efeito pela comissão examinadora, ao argumento de que outras pessoas com características fenotípicas semelhantes à sua tiveram chanceladas semelhantes autodeclarações. Com efeito, alguma razão assiste ao autor no que se refere à natureza relativamente subjetiva da avaliação fenotípica, quando menos porque, no atual estágio tecnológico, não é possível, nessa seara, estabelecer parâmetros absolutos, objetivamente aferíveis ou numericamente mensuráveis. Logo, no contexto assim desenhado, se alguma margem de subjetividade deve mesmo ser tolerada, ante a falta de critérios objetivos seguros, exsurge, então, mais uma forte razão a sinalizar em desfavor do emprego do especialíssimo rito mandamental para se discutir e definir, no caso concreto, o direito do recorrente em se ver enquadrado como pardo, para o fim de concorrer em vagas nesse segmento reservadas.

Tese Firmada: É inadequado o manejo de mandado de segurança com vistas à defesa do direito de candidato em concurso público a continuar concorrendo às vagas reservadas às pessoas pretas ou pardas, quando a comissão examinadora de heteroidentificação não confirma a sua autodeclaração.

Questão Jurídica: Concurso público. Cotas. Candidato autodeclarado pardo. Posterior recusa pela comissão especial. Caso concreto. Dilação probatória. Inadequação da via mandamental.

Ementa: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. COTAS. CANDIDATO AUTODECLARADO PARDO. POSTERIOR RECUSA DESSA CONDIÇÃO PELA COMISSÃO ESPECIAL. CASO CONCRETO. INADEQUAÇÃO DA VIA MANDAMENTAL PARA SE QUESTIONAR A PRETENDIDA CONDIÇÃO DE AFRODESCENDENTE DO IMPETRANTE. ALEGAÇÃO DE IMPEDIMENTO ENTRE MEMBROS DA COMISSÃO ESPECIAL. VÍNCULO CONJUGAL ENTRE DOIS DELES. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA EXTRAÍDA DE REDES SOCIAIS. FORÇA PROBATÓRIA INSUFICIENTE. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. 1. A ampla devolutividade do recurso ordinário em mandado de segurança, assemelhado à apelação, autoriza a que o tribunal revisor efetue amplo escrutínio da causa a ele devolvida, como bem se extrai da combinada exegese dos arts. 1.028 e 1.013 do Código de Processo Civil. 2. Caso concreto em que o impetrante disputou uma das vagas para provimento de cargos de Analista Judiciário do quadro efetivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, concorrendo às cotas reservadas às pessoas pretas/pardas. Ocorreu que, embora autodeclarado pardo, essa condição não foi confirmada pela banca examinadora, mesmo após apreciação do recurso administrativo, instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos dermatologistas. Daí a irresignação que o motivou a impetrar o presente mandamus, no qual busca a concessão da ordem para que seja reconhecido como candidato de cor parda. 3. Como ensinado por CELSO AGRÍCOLA BARBI, "o conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois esta é adequada a uma demonstração imediata e segura dos fatos" (Do mandado de segurança. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 56-57). 4. Nessa toada, ainda que o impetrante afirme ser titular de uma posição jurídica alegadamente violada por autoridade pública, a opção pela via corretiva mandamental somente se mostrará procedimentalmente adequada se os fatos que alicerçarem tal direito puderem ser comprovados de plano e de forma incontestável, mediante a apresentação de prova documental trazida já com a petição inicial. 5. O parecer emitido pela Comissão examinadora, quanto ao fenótipo do candidato, ostenta, em princípio, natureza de declaração oficial, por isso dotada de fé pública, razão pela qual não pode ser infirmada senão mediante qualificada e robusta contraprova. Na espécie, os elementos probatórios trazidos com a exordial não se revelam aptos a desautorizar, de plano, a desfavorável conclusão a que chegaram os três componentes da Comissão, no que averbaram a condição não parda do candidato autor. Outrossim, a dilação probatória é providência sabidamente incompatível com a angusta via do mandado de segurança, o que inibe a pretensão autoral de desconstituir, dentro do próprio writ, a conclusão a que chegaram os avaliadores. 6. Se alguma margem de subjetividade deve mesmo ser tolerada, ante a falta de critérios objetivos seguros, exsurge, então, mais uma forte razão a sinalizar em desfavor do emprego do especialíssimo rito mandamental para se discutir e definir, no caso concreto, o direito do recorrente em se ver enquadrado como pardo, para o fim de concorrer em vagas nesse segmento reservadas. 7. As provas apresentadas pelo impetrante, acerca do aventado relacionamento entre dois dos integrantes da comissão, foram extraídas, segundo informado pelo próprio candidato, de "redes sociais", razão pela qual, só por si e de per si, não induzem à necessária certeza e incontestabilidade acerca da situação jurídica que delas se deseja extrair (a saber, o estado de conjugalidade entre os apontados componentes da comissão especial), carecendo o fato assim anunciado de maior e mais aprofundada investigação - inviável em sítio mandamental -, em ordem a se poder afastar a presunção relativa de legalidade de que se revestem os atos administrativos que, no ponto, vão desde a portaria de designação dos membros da comissão especial até ao seu posterior e unânime pronunciamento pela recusa da autodeclarada condição de pardo do autor recorrente. 8. Também no mandado de segurança, a prova pré-constituída ofertada com a inicial tem por destinatário final o juízo, a quem toca o encargo último de valorar a força de seu conteúdo probante. Por isso que, mesmo quando não impugnada, pela autoridade coatora, a falta de aptidão da prova pré-constituída para conferir veracidade ao fato afirmado pela parte impetrante, ainda assim poderá o juiz, em seu ofício valorativo, recusar-lhe força probante, como no caso presente. 9. Recurso ordinário conhecido para, de ofício, extinguir a ação mandamental, sem resolução do mérito, por inadequação da via eleita. (STJ. RMS 58.785-MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, PrimeiraTurma, por unanimidade, julgado em 23/08/2022 - Publicado no Informativo nº 746)