STJ. REsp 1.583.430-RS

Enunciado: A controvérsia cinge-se a determinar se é viável o ajuizamento de ação civil pública apontando abusividade contratual, sem que seja colacionado aos autos um único contrato, extrato, recibo de pagamento ou documento equivalente que indique a cumulação da cobrança de comissão de permanência com outros encargos. É bem de ver que o direito processual coletivo, com base constitucional e legal (Lei n. 8.078/1990, Código de Defesa do Consumidor; e Lei n. 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública), possui inegável vertente instrumentalista, afirmada pela disponibilização de institutos eficazes de garantia da ordem jurídica justa. Dessa feição plural do direito, própria do processo coletivo, sobressai a ideia de solidariedade, que impõe a transformação do modelo clássico de legitimação processual ativa, inadequado à regulação dos conflitos de grupos e coletividades. A tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, em que pese tratar-se de clássicos direitos subjetivos divisíveis e disponíveis, justifica-se em razão da prevalência das questões comuns (homogeneidade) e da superioridade em termos de eficácia e de justiça. Segundo a doutrina, distinguem-se duas ordens de tutela coletiva: 1ª) a dos interesses e direitos essencialmente coletivos (que se enquadrariam nos difusos, segundo o critério do CDC) e dos coletivos "propriamente ditos" (os coletivos do CDC), e 2ª) a dos interesses ou direitos de natureza coletiva apenas na forma em que são tutelados (correspondendo aos direitos individuais homogêneos). Nessa categoria de direitos, embora direitos subjetivos tradicionais (divisíveis e patrimoniais), passíveis, portanto, de atenção individualizada, seu tratamento coletivo se justifica em razão da conveniência dos interesses da coletividade, dada a repercussão e a dimensão marcadamente sociais. O modelo de tutela coletiva doméstico inspirou-se nas class actions for damage norte-americanas, cuja admissibilidade, na tutela dos direitos individuais homogêneos, requer o cumprimento obrigatório de dois pressupostos, a saber: 1) prevalência das questões comuns de fato e de direito, ou teríamos um direito heterogêneo; e 2) superioridade, em eficácia e justiça, da tutela coletiva. Concomitantemente, o processo civil brasileiro é regido pela teoria da substanciação do pedido, de modo que a causa de pedir constitui-se não pela relação jurídica afirmada pelo autor, mas pelo fato ou complexo de fatos que fundamentam a pretensão que se entende por resistida. O Juiz goza de liberdade, dentro dos limites fáticos aportados no processo, para a aplicação do direito, sob o enquadramento jurídico que entender pertinente. Ao qualificar os fatos trazidos ao seu conhecimento, o magistrado não fica adstrito aos fundamentos apresentados pelas partes, em observância ao brocardo da mihi factum dabo tibi ius. Consoante leciona a doutrina especializada, há uma diferença tênue, de natureza quantitativa, na formulação da causa de pedir na demanda coletiva. Enquanto numa ação individual é factível que a substanciação desça a minúcias do fato, que não inerentes à própria relação jurídica de cunho material e individual, isto não se verifica com tamanho rigor na demanda coletiva, onde a substanciação acaba tornando-se mais tênue, recaindo apenas sobre aspectos mais genéricos da conduta impugnada na ação. Mesmo nas ações em defesa de interesses individuais homogêneos: basta a descrição da conduta genericamente, o dano causado de forma inespecífica, e o nexo entre ambos, sendo impossível a especificação da narrativa com relação a cada um dos possíveis lesados. A descrição fática deve ser formulada no limite da suficiência para a demonstração da situação material mais ampla, decorrente da própria essência dos interesses metaindividuais. O § 1º do art. 373 do CPC/2015 estabelece que, nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído, já o § 2º elucida que a decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. Nessa acepção, o art. 373 do CPC é um indicativo para o juiz livrar-se do estado de dúvida e decidir o mérito da questão. Tal dúvida deve ser suportada pela parte que tem o ônus da prova. Se a dúvida paira sobre a a alegação de fato constitutivo, essa deve ser paga pelo demandante tendo o juiz de julgar improcedente o seu pedido, ocorrendo o contrário em relação às demais alegações de fato. É imperioso observar também que, a par dessas disposições legais mencionadas, não se pode descuidar de uma interpretação sistemática, pois o art. 370, caput, do CPC estabelece também que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Malgrado o art. 6º, VIII, do CDC preveja a inversão do ônus da prova para facilitação da defesa, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor não exime o autor do ônus de apresentar prova mínima dos fatos constitutivos de seu direito. (AgInt no AREsp n. 917.743/MG, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 08/05/2018, DJe de 18/05/2018). Portanto, como regra de instrução, o ônus da prova destina-se a iluminar o juiz que chega ao final do procedimento sem se convencer sobre as alegações de fato da causa. Admite-se a existência do aspecto relativo ao ônus subjetivo da prova, voltado à atividade das partes, orientando-as quanto à produção dos elementos de convicção necessários a seu êxito. Mas o ônus objetivo ganha em importância quanto á definição da demanda, sendo este seu significado mais evidente e importante, referindo-se ao magistrado. No âmbito do processo coletivo, as situações jurídicas discutidas são complexas, envolvendo direitos essencialmente coletivos, no qual a titularidade pertence a uma coletividade, ou direitos individuais homogêneos, onde existe um grande número de lesados. Assim, a produção da prova nestes casos se afigura dificultosa, uma vez que em muitas situações é impossível demonstrar a lesão aos sujeitos individuais, ou mesmo inviável diante do grande número de sujeitos eventualmente lesados, sendo recorrente e válida a utilização como meio de prova da amostragem (a partir da prova de um fato ou de alguns fatos selecionados de um conjunto comum, formula-se um raciocínio indutivo no qual se pressupõe que uma vez demonstrada determinada situação para os objetos selecionados, esta também se repetirá para os demais componentes do conjunto).

Tese Firmada: É inviável o ajuizamento de ação coletiva, que tenha como causa de pedir abusividade contratual, sem que seja colacionado aos autos uma única prova documental.

Questão Jurídica: Ação Civil Pública. Abusividade contratual. Viabilidade. Demonstração dos fatos constitutivos mediante apresentação ou indicação de início de prova. Necessidade.

Ementa: RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CAUSA DE PEDIR APONTANDO ABUSIVIDADE CONTRATUAL. LEGITIMIDADE DE ASSOCIAÇÃO DE DEFESA DE "CONSUMIDORES DE CRÉDITO" PARA AJUIZAR AÇÃO COLETIVA COM O PROPÓSITO DE VELAR DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DE CONSUMIDORES. EXISTÊNCIA. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEMONSTRAÇÃO DOS FATOS CONSTITUTIVOS MEDIANTE APRESENTAÇÃO OU INDICAÇÃO DE INÍCIO DE PROVA. NECESSIDADE, EM REGRA. PRAZO PRESCRICIONAL DO ART. 27 DO CDC. RESTRITO AOS CASOS EM QUE SE CONFIGURA FATO DO PRODUTO OU DO SERVIÇO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRAZO PARA AJUIZAMENTO. 5 ANOS. DEVER DE DIVULGAÇÃO DA CONDENAÇÃO EM JORNAIS DE GRANDE CIRCULAÇÃO. INEXISTÊNCIA. TESE VINCULANTE, SUFRAGADA EM RECURSO REPETITIVO. 1. A associação autora tem legitimidade para ajuizar ação civil pública vindicando a tutela dos consumidores, em vista de abusividade de disposição contratual prevendo incidência simultânea de comissão de permanência com encargos contratuais. No caso, há: a) direitos individuais homogêneos referentes aos eventuais danos experimentados por aqueles que firmaram contrato; b) direitos coletivos resultantes da suposta ilegalidade em abstrato de cláusula contratual, a qual atinge igualmente e de forma indivisível o grupo de contratantes atuais da ré; c) direitos difusos relacionados aos consumidores futuros, coletividade essa formada por pessoas indeterminadas e indetermináveis. 2. As "associações instituídas na forma do art. 82, IV, do CDC estão legitimadas para propositura de ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos, não necessitando para tanto de autorização dos associados. Por se tratar do regime de substituição processual, a autorização para a defesa do interesse coletivo em sentido amplo é estabelecida na definição dos objetivos institucionais, no próprio ato de criação da associação, não sendo necessária nova autorização ou deliberação assemblear" (REsp n. 1.325.857/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 30/11/2021, DJe de 1º/2/2022). 3. Há uma diferença tênue, de natureza quantitativa, na formulação da causa de pedir na demanda coletiva. Enquanto numa ação individual é factível que a substanciação desça a minúcias do fato, que não inerentes à própria relação jurídica de cunho material e individual, isso não se verifica com tamanho rigor na demanda coletiva, na qual a substanciação acaba tornando-se mais tênue, recaindo apenas sobre aspectos mais genéricos da conduta impugnada na ação. Mesmo nas ações em defesa de interesses individuais homogêneos, basta a descrição da conduta genericamente, o dano causado de forma inespecífica e o nexo entre ambos, sendo impossível a especificação da narrativa com relação a cada um dos possíveis lesados. A descrição fática deve ser formulada no limite da suficiência para a demonstração da situação material mais ampla, decorrente da própria essência dos interesses metaindividuais. 4. O art. 373 do CPC dispõe que o ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. O § 1º estabelece que, nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou ainda à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. Já o § 2º elucida que a decisão prevista no § 1º desse artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. 5. Para dar concretude ao princípio da persuasão racional do juiz, insculpido no art. 371 do CPC/2015, aliado aos postulados de boa-fé, de cooperação, de lealdade e de paridade de armas previstos no novo diploma processual civil (arts. 5º, 6º, 7º, 77, I e II, e 378 do CPC/2015), com vistas a proporcionar uma decisão de mérito justa e efetiva, foi introduzida a faculdade de o juiz, no exercício dos poderes instrutórios que lhe competem (art. 370 do CPC/2015), atribuir o ônus da prova de modo diverso entre os sujeitos do processo quando diante de situações peculiares (art. 373, § 1º, do CPC/2015). A instrumentalização dessa faculdade foi denominada pela doutrina processual "teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova" ou "teoria da carga dinâmica do ônus da prova" (REsp n. 1.888.242/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 31/3/2022). 6. Malgrado o art. 370, caput, do CPC estabeleça poder instrutório amplo, em linha de princípio, deve ser utilizado somente de forma complementar, proporcionando às partes primeiramente se desincumbirem de seus ônus da forma que melhor lhes aprouver. Contudo, no âmbito do processo coletivo, em razão do princípio da indisponibilidade da demanda coletiva, haverá um poder instrutório amplo para o juiz, uma vez que: a) deve fiscalizar a produção probatória, bem como atuar ativamente na sua produção, inclusive com a possibilidade de averiguar a deficiência do substituto processual em produzi-la; b) por serem os representantes escolhidos por um rol legal, ganha ainda mais destaque a função do juiz na instrução probatória, atuando ativamente, ainda que de forma complementar, suprindo eventual deficiência dos substitutos processuais; c) sob um viés estático, as provas pertencem ao campo do direito material, pois, sob esse aspecto, elas são consideradas como meios ou fontes, relacionadas à função de certeza dos negócios jurídicos; mas, sob um aspecto dinâmico, a prova ganha especial importância no direito processual, em razão de importar numa reprodução ao juízo do fato a se provar, o que ocorre no bojo do processo e obriga todos os sujeitos processuais; d) não há nenhum impedimento para a aplicação dessa redistribuição do ônus da prova nas ações civis públicas que veiculem relações de consumo, desde que para beneficiar o consumidor (ou, no caso, o substituto processual dos consumidores). 7. No processo coletivo, as situações jurídicas discutidas são complexas, envolvendo direitos essencialmente coletivos, cuja a titularidade pertence a uma coletividade, ou direitos individuais homogêneos, que envolvem a existência de um grande número de lesados. A produção da prova, nesses casos, afigura-se dificultosa, uma vez que, em muitas situações, é impossível demonstrar a lesão aos sujeitos individuais, ou mesmo inviável diante do grande número de sujeitos eventualmente lesados, sendo recorrente e válida a utilização como meio de prova da amostragem (a partir da prova de um fato ou de alguns fatos selecionados de um conjunto comum, formula-se um raciocínio indutivo no qual se pressupõe que, uma vez demonstrada determinada situação para os objetos selecionados, ela também se repetirá para os demais componentes do conjunto). 8. Por um lado, em linha de princípio, quem afirma um fato positivo tem de prová-lo com preferência a quem sustenta um fato negativo, não sendo conveniente o ajuizamento de ação civil pública apontando abusividade contratual sem que seja colacionado aos autos um único contrato, extrato, recibo de pagamento ou documento equivalente que indique a cumulação da cobrança de comissão de permanência com outros encargos. Por outro lado, deveria o Juízo de primeira instância ter determinado ao menos que a parte demandada colacionasse aos autos seus contratos de adesão, de modo a aferir a efetiva existência de cláusula abusiva, prevendo a cumulação de comissão de permanência com encargos narrada na exordial; por sua vez, a própria recorrente, exercitando o seu lídimo direito de defesa, poderia ter colacionado aos autos esses contratos e demais documentos que fossem úteis para a formação do convencimento do Juízo, não se estando a falar de prova diabólica (verdadeiramente impossível). 9. No caso concreto, não há necessidade de reabertura de instrução processual, uma vez que, como bem ponderado pelo Tribunal de origem e também admitido no recurso especial, a própria instituição financeira reconhece que, malgrado nunca tenha efetivado a cumulação da cobrança, em contratos de adesão mais antigos havia a previsão contratual de cumulação de comissão de permanência com outras verbas - a só existência de contrato prevendo a cumulação de comissão de permanência com outros encargos patenteia o interesse de agir da substituta processual e a necessidade do provimento jurisdicional. 10. A causa de pedir da ação não abrange reparação de danos causados por fato do produto ou serviço, requisito essencial para a aplicação do prazo prescricional quinquenal, descrito no art. 27 do CDC, invocado pelo acórdão recorrido. Em que pese não incidir esse prazo prescricional do CDC, consoante a firme jurisprudência do STJ, a "Ação Civil Pública e a Ação Popular compõem um microssistema de tutela dos direitos difusos, por isso que, não havendo previsão de prazo prescricional para a propositura da Ação Civil Pública, recomenda-se a aplicação, por analogia, do prazo quinquenal previsto no art. 21 da Lei n. 4.717/65" (REsp n. 1.070.896/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 14/4/2010, DJe de 4/8/2010). 11. O art. 94 do CDC prevê que, "proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor". O princípio da ampla divulgação da demanda insculpido nessa disposição legal tem a teleologia de dar ciência da ação aos interessados, propiciando a concentração da discussão da matéria comum na ação coletiva. Nessa linha de intelecção, a Primeira Seção sufragou, em âmbito de recurso repetitivo, a tese de que "o art. 94 do Código de Defesa do Consumidor disciplina a hipótese de divulgação da notícia da propositura da ação coletiva, para que eventuais interessados possam intervir no processo ou acompanhar seu trâmite, nada estabelecendo, porém, quanto à divulgação do resultado do julgamento" (REsp n. 1.388.000/PR, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 12/4/2016). 12. Recurso especial parcialmente provido. (STJ. REsp 1.583.430-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 23/08/2022 - Publicado no Informativo nº 748)