STJ. RHC 164.616-GO

Enunciado: A questão posta é se é lícito que advogado, sem justa causa, ofereça delatio criminis contra cliente com base em fatos de que teve conhecimento no exercício do mandato. No caso, o advogado espontaneamente apresentou noticia criminis ao Ministério Público, informando ter provas, mas condicionando sua apresentação a exclusão de eventual denúncia e isenção das demais consequências não criminais. O advogado não estava sendo investigado ou acusado de prática delitiva, nem estava se defendendo de acusação por seu cliente da prática delitiva. Embora o acordo de colaboração premiada tenha representado uma inovação no sistema de Justiça criminal, o Supremo Tribunal Federal, no HC n. 142.205/PR, assentou a possibilidade de anulação e declaração de ineficácia probatória de acordos de colaboração premiada firmados em desrespeito às normas legais e constitucionais (HC n. 142.205/PR, relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 1/10/2020.) Na ocasião, consignou o relator que "[p]ara punir adequadamente fatos lesivos à sociedade (e é óbvio que isso deve ser feito), é necessário o respeito irrestrito aos ditames legais, constitucionais e convencionais". O dever de sigilo profissional imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos. Nessa direção, a doutrina afirma que a inviolabilidade da atividade do advogado, "na verdade, é uma proteção ao cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação (...)". Não há empecilho ao deferimento de medidas restritivas contra advogado investigado ou acusado da prática de crimes. Também não há ilicitude na conduta do advogado que apresenta em juízo documentos e provas de que dispõe em razão do exercício profissional para se defender de imputação de prática de crime feita por um cliente, em razão do princípio da ampla defesa e contraditório. O que é inadmissível é a conduta do advogado que, sponte propria, independentemente de provocação e na vigência de mandato de procuração que lhe foi outorgado, grava clandestinamente suas comunicações com seus clientes com objetivo delatados, e entrega às autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão, violando o dever de sigilo profissional (art. 34, VII, da Lei n. 8.906/1994). Não é por outra razão que a Lei n. 14.365/2022, que alterou a Lei n. 8.904/1994, passou a dispor no § 6º-I do art. 6º ser "vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)". Diante disso, inafastável a conclusão quanto à ilegalidade da conduta do advogado que trai a confiança nele depositada, utilizando-se de posição privilegiada, para delatar seus clientes e firmar acordo com o Ministério Público.

Tese Firmada: São ilícitas as provas obtidas em acordo de delação premiada firmado com advogado que, sem justa causa, entrega às autoridades investigativas documentos e gravações obtidas em virtude de mandato que lhe fora outorgado, violando o dever de sigilo profissional.

Questão Jurídica: Advogado. Apresentação de noticia criminis ao Ministério Público. Delação. Ausência de justa causa. Violação ao dever de sigilo profissional. Ilicitude das provas obtidas.

Ementa: RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR HABEAS CORPUS. EXCEPCIONALIDADE. LEI N. 12.850/2013. COLABORAÇÃO PREMIADA FEITA POR ADVOGADO. NATUREZA JURÍDICA DE MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO. VIOLAÇÃO DE SIGILO PROFISSIONAL. ART. 34, VII, DA LEI N. 8.906/1994. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. MÁ-FÉ CARACTERIZADA. NULIDADE DO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO PROVIDO. 1. O trancamento da ação penal por habeas corpus é medida excepcional, admissível quando comprovada a atipicidade da conduta, a incidência de causas de extinção da punibilidade ou a falta de provas de materialidade e indícios de autoria. 2. Nos termos da Lei n. 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada é um meio de obtenção de provas, no qual o poder estatal compromete-se a conceder benefícios ao investigado/acusado sob condição de cooperar com a persecução penal, em especial, na colheita de provas contra os outros investigados/acusados. 3. É possível a anulação e a declaração de ineficácia probatória de acordos de colaboração premiada firmados em desrespeito às normas legais e constitucionais. 4. O dever de sigilo profissional imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos e o sistema democrático. 5. É ilícita a conduta do advogado que, sem justa causa, independentemente de provocação e na vigência de mandato, grava clandestinamente suas comunicações com seus clientes com objetivo de delatá-los, entregando às autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão, em violação ao dever de sigilo profissional imposto no art. 34, VII, da Lei n. 8.906/1994. 6. O sigilo profissional do advogado é premissa fundamental para exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de confiança entre defensor técnico e cliente. 7. O Poder Judiciário não deve reconhecer a validade de atos negociais firmados em desrespeito à lei e em ofensa ao princípio da boa-fé objetiva. 8. A conduta do advogado que, sem justa causa e em má-fé, delata seu cliente, ocasiona a desconfiança sistêmica na advocacia, cuja indispensabilidade para administração da justiça é reconhecida no art. 133 da Constituição Federal. 9. Ausente material probatório residual suficiente para embasar a ação penal, não contaminado pela ilicitude, inafastável o acolhimento do pedido de trancamento da ação penal. 10. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal. (STJ. RHC 164.616-GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 27/09/2022, DJe 30/09/2022 - Publicado no Informativo nº 751)