STJ. AgRg no AgRg no RHC 161.096-SC

Enunciado: A orientação do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a competência não pode ser definida a partir de um critério temático, que destoa das leis processuais; e que a descoberta fortuita de crimes, no bojo de operações investigatórias complexas, não pode ter como desdobramento a criação de juízo universal, definido de forma anômala, em violação ao princípio do juiz natural. De outro modo: "a prevenção não é critério primário de determinação da competência, mas, sim, de sua concentração, tratando-se de regra de aplicação residual [...] o fato de a polícia judiciária ou o Ministério Público Federal denominarem determinadas apurações como fases da Operação Lava Jato, a partir de uma sequência de investigações sobre crimes diversos, não se sobrepõe às normas disciplinadoras de competência". Cabe ponderar, ainda, que o processo penal moderno é desenvolvido com base em dois direitos fundamentais e, por vezes, antagônicos: direito à segurança e direito à liberdade. Portanto, de um lado, o processo tem que ser eficiente, para efetivar o direito à segurança pública e, ao mesmo tempo, garantista, visando regrar a atuação do Estado, com o fim de evitar arbítrio e preservar a liberdade do cidadão. A análise de toda e qualquer regra sobre competência deve principiar pela verificação de sua compatibilidade com a garantia constitucional correlata do juiz natural. A Constituição de 1988, em dois dispositivos, assegura a garantia do juiz natural em seu duplo aspecto: a garantia de que ninguém será processado ou sentenciado senão por autoridade judiciária competente (art. 5º, inc. LIII), e da vedação dos tribunais de exceção (art. 5º, inc. XXXVII). Efetivamente, a conexão é fator que interfere no processo de concretização de competência para a definição do órgão jurisdicional apropriado para um determinado caso concreto. É compatível com a garantia do juiz natural, desde que suas disciplinas legais se fundem em critérios objetivos e claros, sem margem alguma para escolhas discricionárias do órgão jurisdicional que irá atuar. Nessa linha de intelecção, há de se evitar a banalização das alterações dos critérios legais de competência, porquanto o rol taxativo das hipóteses de conexão não pode ser ampliado de forma a atingir esses princípios balizadores da prestação jurisdicional.

Tese Firmada: A verificação dos crimes no mesmo contexto fático configura mera descoberta fortuita e não implica, necessariamente, conexão probatória ou teleológica entre eles.

Questão Jurídica: Crimes no mesmo contexto fático. Mera descoberta fortuita. Ausência de conexão intersubjetiva. Identidade de modus operandi. Insuficiência para o reconhecimento da conexão nos termos do art. 76 do CPP.

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CONEXÃO ENTRE A OPERAÇÃO HEMORRAGIA E A OPERAÇÃO ALCATRAZ. EXCEPCIONALIDADE DE UMA DAS SEIS AÇÕES PENAIS ORIUNDAS DA OPERAÇÃO HEMORRAGIA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. AUSÊNCIA DE VERBAS ADVINDAS DA UNIÃO. ATESTE DA SECRETARIA DA FAZENDA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. AUSÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. POSSIBILIDADE DE REVALORAÇÃO JURÍDICA DAS PROVAS. INEXISTÊNCIA DE INTERESSE DA UNIÃO NO FEITO. AUSÊNCIA DE CONEXÃO INTERSUBJETIVA. IDENTIDADE DE MODUS OPERANDI. INSUFICIÊNCIA PARA O RECONHECIMENTO DE CONEXÃO NOS TERMOS DO ARTIGO 76 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CPP. FEITO DE GRANDE COMPLEXIDADE. MERA DESCOBERTA FORTUITA DE CRIMES NO MESMO CONTEXTO FÁTICO. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 122 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ. ORIENTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE COMPETÊNCIA E PRINCÍPIO DO JUÍZ NATURAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL RECONHECIDA. AGRAVO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. Trata-se de segundo agravo regimental, interposto pelo Ministério Público Federal em face de decisão pela qual - em juízo de retratação exercido no primeiro agravo regimental interposto pela defesa - foi dado provimento a recurso ordinário em habeas corpus, a fim de reconhecer a competência da Justiça Estadual de Santa Catarina para o julgamento de Ação Penal 5004378-58.2021.4.04.7200/SC (numeração da Justiça Federal), uma das seis ações penais oriundas da Operação Hemorragia, referente ao Núcleo Empresa Alfa. 2. Embora a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 147467/SC (DJe 25/10/2021) tenha reconhecido a conexão entre a Operação Hemorragia e a Operação Alcatraz, o caso em análise, que diz respeito exclusivamente à Ação Penal 5004378-58.2021.4.04.7200/SC, possui importante particularidade, materializada por prova pré-constituída, no sentido de que as verbas utilizadas no Contrato 465/2009, a despeito de serem geridas pelo Fundo Estadual de Saúde, não possuem em sua composição verbas federais oriundas da União. 3. A afirmação contida na nota técnica da Controladoria Geral da União - GCU no sentido de que o Fundo Estadual recebeu recursos federais no período de vigência do Contrato 465/2009 é insuficiente para levar à conclusão de que referido contrato tenha se concretizado mediante utilização de recursos federais. Isso porque, na singularidade do caso concreto, consta dos autos ofício expedido pela Diretoria de Planejamento Orçamentário - DIOR, da Secretaria da Fazenda de Estado de Santa Catarina que afirma a inexistência de verbas federais na composição das fontes de custeio utilizadas no Contrato 465/2009. 4. É relevante a tese da defesa arguida perante o Tribunal a quo no sentido de que "em nenhum momento, no período de 2009 a 2020, nos pagamentos feitos à empresa MICROMED, conforme dados do Portal da Transparência do Estado de Santa Catarina, aparece o código de fonte pagadora 223 ou 623, que seria o de Convênio SUS". Ressalte-se que a identificação da origem dos recursos utilizados no custeio do contrato é perfeitamente possível e esperada nos sistemas modernos de controle interno, haja vista a necessidade de identificação da fonte de custeio das despesas públicas. Com efeito, as verbas da União transferidas do Fundo Nacional de Saúde para o Fundo Estadual de Saúde comumente possuem destinação "carimbada", razão pela qual o gestor de tais recursos deve saber informar a composição das fontes de custeio de cada contrato, com vistas a demonstrar que os recursos federais foram utilizados conforme destinação específica, identificando, ainda, aqueles contratos que foram firmados apenas com aportes do Estado de Santa Catarina, como é o caso do Contrato 465/2009. 5. A afirmação genérica de que o caso concreto trata de transferência fundo a fundo de recursos da saúde revela-se equivocada porque, malgrado o Fundo Estadual de Saúde tenha recebido recursos federais no Fundo Nacional de Saúde no período no qual foi firmado Contrato 465/2009, conforme consta da nota técnica da CGU, no caso ora em análise há prova pré-constituída, que dispensa esforço interpretativo, no sentido de que referido contrato não utilizou referidas verbas federais, valendo-se de outros recursos que integram o Fundo Estadual de Saúde do Estado de Santa Catarina. 6. Diante do ateste de ausência de verbas federais no contrato objeto da Ação Penal 5004378-58.2021.4.04.7200, não há interesse da União no feito e não se justifica a fiscalização do Tribunal de Contas da União - TCU, o que, de fato, não ocorreu no caso em análise, restando configurada a Competência da Justiça Estadual. 7. Considerando-se que o acórdão impugnado faz menção ao ofício expedido pela Diretoria de Planejamento e Orçamento da Secretaria do Estado de Santa Catarina, no qual se funda a pretensão da defesa de reconhecimento da competência da Justiça Estadual, está configurada a possibilidade de revaloração jurídica das premissas relevantes ao deslinde da controvérsia. Precedentes do STJ: AgRg no AREsp n. 1.908.229/GO, relator Ministro Jesuíno Rissato - Desembargador Convocado do TJDFT - Quinta Turma, DJe de 25/11/2021 e AgRg no HC n. 732.388/SP, relator Ministro Olindo Menezes - Desembargador Convocado do TRF 1ª Região - Sexta Turma, DJe de 20/6/2022. 8. No caso dos autos, o reconhecimento da conexão pelo Tribunal a quo apoiou-se em dois pilares: e conexão intersubjetiva e prática de "esquema em tese similar". Todavia, quanto à conexão intersubjetiva, o fato de um dos cinco denunciados na Ação Penal 5004378-58.2021.4.04.7200/SC ser investigado na Operação Alcatraz, constitui liame demasiadamente tênue para o reconhecimento da conexão, à míngua de maiores esclarecimentos acerca da dinâmica delitiva. No que diz respeito ao fundamento da prática de "esquema em tese similar", mencionado genericamente pelo acórdão impugnado, a Terceira Seção do STJ já reconheceu que a similitude do modus operandi na pratica delituosa, por si, é insuficiente para implicar conexão nos termos do art. 76 do CPP. Referido colegiado também já ponderou que a cisão processual (art. 80 do CPP) é a medida mais adequada, em se tratando de operações de grande complexidade com excessivo número de acusados, não sendo o caso de aplicar o entendimento firmado na Súmula 122/STJ. Precedentes do STJ: CC n. 162.510/SP, de minha relatoria, Terceira Seção, DJe de 21/2/2020 e CC n. 174.429/ES, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe de 25/9/2020. 9. A verificação dos crimes no mesmo contexto fático configura mera descoberta fortuita e não implica, necessariamente, conexão probatória ou teleológica entre eles. Precedente do STJ: CC n. 149.304/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe de 2/3/2017. 10. Conforme orientação do Supremo Tribunal Federal - STF, a competência não pode ser definida a partir de um critério temático, que destoa das leis processuais; e a descoberta fortuita de crimes, no bojo de operações investigatórias complexas, não pode ter como desdobramento a criação de juízo universal, definido de forma anômala, em violação ao princípio do juiz natural. Em sábias palavras: "a prevenção não é critério primário de determinação da competência, mas sim de sua concentração, tratando-se de regra de aplicação residual [...] o fato de a polícia judiciária ou o Ministério Público Federal denominarem determinadas apurações como fases da Operação Lava Jato, a partir de uma sequência de investigações sobre crimes diversos, não se sobrepõe às normas disciplinadoras de competência". Precedentes do STF: Pet 8090 AgR, Relator Ministro Edson Fachin. relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 11/12/2020 e Inq 4130 QO, relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 3/2/2016. 11. Mantida a decisão agravada no sentido de conceder a ordem impetrada, declarando a incompetência da 1ª Vara Federal de Florianópolis-SC para o processo e julgamento da Ação Penal 5004378-58.2021.4.04.7200/SC (numeração da Justiça Federal), revogando todas as cautelares eventualmente impostas e determinando a remessa dos respectivos autos à Justiça Estadual de Santa Catarina. Consequentemente, mercê da disposição do art. 567 do CPP, declarada a nulidade dos atos decisórios proferidos pelo juízo incompetente, incluído o recebimento da denúncia, cabendo ao juízo competente, eventualmente, decidir sobre a convalidação dos atos instrutórios. 12. Nada impede que o Juízo do Estado de Santa Catarina declarado competente - caso entenda pelo recebimento da denúncia - delibere acerca da necessidade de medidas cautelares, decidindo como entender de direito, conforme seu livre convencimento motivado. 13. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (STJ. AgRg no AgRg no RHC 161.096-SC, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 4/10/2022, DJe 17/10/2022 - Publicado no Informativo nº 761)