STJ. REsp 1.543.826-RJ

Enunciado: A controvérsia diz respeito aos "limites da análise" a ser efetuada pela agência reguladora para fins da anuência prévia imposta pelo artigo 229-C da Lei de Propriedade Industrial, ou seja: deve ficar adstrita a certificar se os produtos ou os processos farmacêuticos - objetos do pedido de patente - apresentam ou não potencial risco à saúde ou lhe é permitido adentrar os requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial -, cuja análise técnica, em linha de princípio, compete ao INPI. Nos termos do artigo 6º da Lei da Anvisa, sua finalidade institucional consiste em promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras. Entre outras competências previstas no artigo 7º da lei, destaca-se a voltada à correção de falhas de mercado do setor de fármacos, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos, podendo a agência reguladora, para tanto, requisitar informações, proceder ao exame de estoques ou convocar os responsáveis para explicarem conduta indicativa de infração à ordem econômica, tais como a imposição de preços excessivos ou aumentos injustificados (inciso XXV). O relevante papel desempenhado pela Anvisa na esfera da regulação econômico-social do setor extrai-se, ainda, do fato de exercer a Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial criado pela Lei n. 10.742/2003 - integrado pelos Ministros da Saúde, da Casa Civil, da Fazenda, da Justiça e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - e que tem por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores. Assim, conquanto não se possa descurar das atribuições legais do INPI - principalmente a execução, no âmbito nacional, de normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica -, em relação às patentes de fármacos, não há falar em invasão institucional por parte da Anvisa, quando a recusa da anuência prévia estiver fundamentada em qualquer critério demonstrativo do impacto prejudicial da concessão do privilégio às políticas de saúde pública, que abrangem a garantia de acesso universal à assistência farmacêutica integral. Isso porque a diferença das perspectivas de análise das referidas autarquias federais sobre o pedido de outorga de patente farmacêutica afasta qualquer conflito de atribuições. Com efeito, é certo que o INPI, vinculado atualmente ao Ministério da Economia, tem por objetivo garantir a proteção eficiente da propriedade industrial e, nesse mister, parte de critérios fundamentalmente técnicos, amparados em toda a sua expertise na área, para avaliar os pedidos de patente, cujo ato de concessão consubstancia ato administrativo de discricionariedade vinculada aos parâmetros abstratos e tecnológicos constantes da lei de regência e de seus normativos internos. Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do "ato de anuência prévia", deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população. A atuação da agência reguladora, no caso, traduz, marcadamente, uma função redistributiva, na qual se procura conciliar o interesse privado - direito de exclusividade da exploração lucrativa da invenção - com as metas e os objetivos de interesses públicos encartados nas políticas de saúde. A tese ora proposta, portanto, decorre da interpretação sistemática das normas contidas no inciso I do artigo 18 da Lei de Propriedade industrial - proibição de outorga de patentes a invenções contrárias à saúde pública - e nas Leis n. 9.782/1999 e 10.742/2003, que delineiam as funções institucionais e as competências expressamente atribuídas à Anvisa no sentido de resguardar a viabilidade das políticas de saúde consideradas "de relevância pública" pela Constituição de 1988. Nessa perspectiva, a estipulação da "anuência prévia" da autarquia especial, como condição para a concessão da patente farmacêutica, tem por base o seu papel de regulação econômico-social - ou socioeconômica - do setor de medicamentos, que se justifica pelos mandamentos extraídos da Carta Magna, no sentido da necessária harmonização do direito à propriedade industrial com os princípios da função social, da livre concorrência e da defesa do consumidor, assim como o interesse social encartado no dever do Estado de, observada a cláusula de reserva do possível, conferir concretude ao direito social fundamental à saúde (artigos 5º, incisos XXIII, XXIX, 6º, 170, incisos III, IV e V, e 196). Em acréscimo, ressalta-se que, à luz da norma legal analisada (artigo 229-C da Lei n. 9.279/1996), a exigência de anuência prévia da Anvisa constitui pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico - o que, por óbvio, decorre da extrema relevância dos medicamentos para a garantia do acesso universal à assistência integral à saúde -, não podendo, assim, o parecer negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável. Nada obstante, eventual divergência entre as autarquias sobre os fundamentos exarados no parecer desfavorável à pretensão patentária, deve ser dirimida sob uma ótica dialética e cooperativa - recomendável no âmbito da Administração Pública -, em que busquem equacionar "o propósito de estímulo da atividade inventiva conducente ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País" e "o interesse social de concretização do direito fundamental à saúde objeto das políticas públicas do SUS".

Tese Firmada: Em se tratando de pedido de patente de fármacos, compete à Anvisa analisar - previamente à análise do INPI - quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga de direito de exclusividade (de produção, uso, comercialização, importação ou licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à saúde pública.

Questão Jurídica: Propriedade industrial. Patente de fármacos. Art. 229-C da Lei n. 9.279/1996. Anuência prévia da ANVISA. Manifestação quanto ao eventual risco à saúde pública e aos requisitos de patenteabilidade. Necessidade.

Ementa: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO JUDICIAL VOLTADA AO PROSSEGUIMENTO DE PEDIDOS DE PATENTES DE MEDICAMENTOS A DESPEITO DE PARECERES NEGATIVOS DA ANVISA. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 229-C DA LEI 9.279/1996. 1. Nos termos do artigo 229-C da Lei 9.279/1996, a concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos depende da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 2. Tal parecer positivo constitui pressuposto de validade da outorga de patentes farmacêuticas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), inferência que decorre da conjugação da citada norma com o disposto no inciso I do artigo 18 do mesmo diploma legal, que privilegia a função econômico-social da propriedade industrial ao considerar não patenteáveis as invenções ou os modelos de utilidade contrários à saúde pública, cuja proteção insere-se entre as competências da agência reguladora. 3. A expressão "saúde pública" tem significado mais amplo que "saúde individual": não se resume a tratamento ou a recuperação de doença, mas sim compreende o conjunto de medidas preventivas e de controle de enfermidades destinadas a garantir o bem estar físico, mental e social de todos e de cada um dos membros da coletividade, o que inclui ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica e a formulação de política de medicamentos. 4. A ampliação do conceito de saúde - para além da saúde individual - decorre de sua consagração como direito de todos a ser garantido pelo Estado, ao qual foi atribuído o dever de formulação e de execução de políticas econômicas e sociais voltadas à redução de riscos de doenças e de outros agravos e que assegurem acesso universal e igualitário aos "serviços públicos de saúde" e às chamadas "ações de saúde" para a promoção, a proteção e a recuperação do bem-estar físico e mental, de modo a garantir a dignidade humana, imperativo da Carta Magna de 1988. 5. Com o intuito de viabilizar a efetivação desse dever estatal, a Constituição criou o Sistema Único de Saúde (SUS), referência mundial no setor, que abrange as referidas ações e serviços públicos - apenas complementados por serviços privados - organizados em redes regionalizadas e hierarquizadas de modo a garantir o atendimento integral à população, com prioridade para os cuidados preventivos e curativos, sem prejuízo dos serviços assistenciais (artigo 198). 6. Ao definir o campo de atuação do SUS, o artigo 6º da Lei 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) revela que tais ações e serviços de relevância pública não se limitam à realização de consultas, exames e internações, mas também incluem ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (inciso I, alínea "d") e a formulação de política de medicamentos (inciso VI). 7. A chamada assistência terapêutica integral consiste na distribuição de medicamentos - cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo a ser tratado - e na oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS (artigo 19-M da Lei 8.080/1990, incluído pela Lei 12.401/2011). 8. Nesse cenário, o relevante papel desempenhado pela Anvisa na esfera da regulação econômico-social do setor de medicamentos extrai-se da competência prevista no inciso XXV do artigo 7º da Lei 9.782/1999 - voltada à correção de falhas de mercado, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos - e do fato de a agência reguladora exercer a Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial criado pela Lei 10.742/2003, que tem por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores. 9. O mister institucional da Anvisa no processo de concessão de patentes farmacêuticas não se confunde com o controle sanitário de medicamentos, drogas e insumos farmacêuticos, realizado no âmbito do procedimento de registro. "Outorga de patente" e "autorização sanitária" são coisas distintas. Interpretá-las como sinônimas significa esvaziar a opção legislativa encartada no artigo 229-C da LPI. 10. A diferença das perspectivas de análise da Anvisa e do INPI sobre o pedido de outorga de patente farmacêutica afasta qualquer conflito de atribuições. O INPI - vinculado atualmente ao Ministério da Economia - tem por objetivo garantir a proteção eficiente da propriedade industrial e, nesse mister, parte de critérios fundamentalmente técnicos, amparados em toda a sua expertise na área, para avaliar os pedidos de patente, cujo ato de concessão consubstancia ato administrativo de discricionariedade vinculada aos parâmetros abstratos e tecnológicos constantes da lei de regência e de seus normativos internos. Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do "ato de anuência prévia", deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos - ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) - que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população. 11. Outrossim, não se constata conflito entre a interpretação ora conferida ao artigo 229-C da LPI e as normas dispostas no Acordo TRIPS, notadamente em razão das mitigações introduzidas em 2001, com a Declaração de Doha, prevendo que a sua implementação se coaduna com o direito de cada Nação de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso a medicamentos para todos. 12. Desse modo, reconhecendo-se a anuência prévia da Anvisa como pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico, é certo que o respectivo parecer negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, não pode ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável. 13. Recurso especial da Anvisa provido para julgar improcedente a pretensão da Novartis de prosseguimento do trâmite de pedidos de patente, tendo em vista a validade e o caráter vinculativo da negativa de anuência exarada pela agência reguladora, nos limites de suas funções institucionais. (STJ. REsp 1.543.826-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 05/08/2021. - Publicado no Informativo nº 703)