STJ. REsp 1.918.421-SP

Enunciado: Na hipótese em análise, os cônjuges valeram-se da reprodução assistida homóloga, tendo a fertilização se realizado in vitro, a partir da utilização de material genético dos próprios envolvidos. A partir da fertilização promovida, destacaram-se em qualidade ao menos dois embriões, os quais foram criopreservados, não se concluindo a etapa de transferência (implantação no útero). Nos casos em que a expressão da autodeterminação significar a projeção de efeitos para além da vida do sujeito de direito, com repercussões existenciais e patrimoniais, imprescindível que sua manifestação se dê de maneira inequívoca, leia-se expressa e formal, efetivando-se por meio de instrumentos jurídicos apropriadamente arquitetados pelo ordenamento, sob de pena de ser afrontada. No rumo desse raciocínio, ganha espaço o instituto do testamento, que tem como marca distintiva a declaração de vontade, expressão indiscutível da autonomia pessoal, e, nada obstante escape ao tradicional, a simples análise do seu conceito é o bastante para revelar que seu objeto não se restringe a disposição de patrimônio pelo testador. Nesses termos, se as disposições patrimoniais não dispensam a forma testamentária, maiores são os motivos para se considerar sejam da mesma forma dispostas as questões existenciais, mormente aqueles que repercutirão na esfera patrimonial de terceiros, não havendo maneira mais apropriada de garantir-se a higidez da vontade do falecido. Seguindo por esse entendimento, não há dúvidas de que a decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia. Ademais, ao revés, admitir-se que a autorização posta naquele contrato de prestação de serviços, na hipótese, marcado pela inconveniente imprecisão na redação de suas cláusulas, possa equivaler a declaração inequívoca e formal, própria às disposições post mortem, significará o rompimento do testamento que fora, de fato, realizado, com alteração do planejamento sucessório original, sem quaisquer formalidades, por pessoa diferente do próprio testador. Nessa linha, a única conclusão possível é a de que a indicação a autorização dada no formulário pelo parceiro para a transferência do pré-embrião para o primeiro ciclo à parceira, circunscreve-se à autorização para implantação do embrião durante a vida de ambos os cônjuges. Nessa ordem de ideias, os contratos de prestação de serviço de reprodução assistida firmados são instrumentos absolutamente inadequados para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deveria ter sido efetivada por testamento, ou por documento análogo, por tratar de disposição de cunho existencial, sendo um de seus efeitos a geração de vida humana.

Tese Firmada: A declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deve ser efetivada por testamento ou por documento análogo.

Questão Jurídica: Reprodução assistida post mortem. Implantação de embriões excedentários. Declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços. Inadequação. Autorização expressa e formal. Testamento ou documento análogo. Imprescindibilidade.

Ementa: RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DE OFENSA A ATOS NORMATIVOS INTERNA CORPORIS. REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA. REGULAMENTAÇÃO. ATOS NORMATIVOS E ADMINISTRATIVOS. PREVALÊNCIA DA TRANSPARÊNCIA E CONSENTIMENTO EXPRESSO ACERCA DOS PROCEDIMENTOS. EMBRIÕES EXCEDENTÁRIOS. POSSIBILIDADE DE IMPLANTAÇÃO, DOAÇÃO, DESCARTE E PESQUISA. LEI DE BIOSSEGURANÇA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM. POSSIBILIDADE. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA E FORMAL. TESTAMENTO OU DOCUMENTO ANÁLOGO. PLANEJAMENTO FAMILIAR. AUTONOMIA E LIBERDADE PESSOAL. 1. A negativa de prestação jurisdicional não se configura quando todos os aspectos relevantes para o correto julgamento da causa são considerados pelo órgão julgador, estabelecendo-se, de modo claro e fundamentado, a compreensão firmada, ainda que em sentido diferente do desejado pelos recorrentes. 2. Nos termos do entendimento do STJ, é inviável, em recurso especial, a verificação de ofensa/aplicação equivocada de atos normativos interna corporis, tais como regimentos internos, por não estarem compreendidos no conceito de tratado ou lei federal, consoante a alínea "a" do inciso III do art. 105 da CF/1988. 3. No que diz respeito à regulamentação de procedimentos e técnicas de reprodução assistida, o Brasil adota um sistema permissivo composto por atos normativos e administrativos que condicionam seu uso ao respeito a princípios éticos e constitucionais. Do acervo regulatório destaca-se a Resolução n. 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, que impõe a prevalência da transparência, do conhecimento e do consentimento da equipe médica, doadores e receptores do material genético em todas as ações necessárias à concretização da reprodução assistida, desde a formação e coleta dos gametas e embriões, à sua criopreservação e seu destino. 4. Quanto ao destino dos embriões excedentários, a Lei da Biossegurança (Lei n. 11.105/2005) dispõe que poderão ser implantados no útero para gestação, podendo, ainda, ser doados ou descartados. Dispõe, ademais, que, garantido o consentimento dos genitores, é permitido utilizar células-tronco embrionárias obtidas da fertilização in vitro para fins de pesquisa e terapia. 5. Especificamente quanto à reprodução assistida post mortem, a Resolução CFM n. 2.168/2017, prevê sua possibilidade, mas sob a condição inafastável da existência de autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, nos termos da legislação vigente. 6. Da mesma forma, o Provimento CNJ n. 63 (art. 17, § 2º) estabelece que, na reprodução assistida post mortem, além de outros documentos que especifica, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. 7. O Enunciado n. 633 do CJF (VIII Jornada de Direito Civil) prevê a possibilidade de utilização da técnica de reprodução assistida póstuma por meio da maternidade de substituição, condicionada, sempre, ao expresso consentimento manifestado em vida pela esposa ou companheira. 8. O Planejamento Familiar, de origem governamental, constitucionalmente previsto (art. 196, § 7º e art. 226), possui natureza promocional, e não coercitiva, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, e consiste na viabilização de utilização de recursos educacionais e científicos, bem como na garantia de acesso igualitário a informações, métodos e técnicas de regulação da fecundidade. 9. O princípio da autonomia da vontade, corolário do direito de liberdade, é preceito orientador da execução do Planejamento Familiar, revelando-se, em uma de suas vertentes, um ato consciente do casal e do indivíduo de escolher entre ter ou não filhos, o número, o espaçamento e a oportunidade de tê-los, de acordo com seus planos e expectativas. 10. Na reprodução assistida, a liberdade pessoal é valor fundamental e a faculdade que toda pessoa possui de autodeterminar-se fisicamente, sem nenhuma subserviência à vontade de outro sujeito de direito. 11. O CC/2002 (art. 1.597) define como relativa a paternidade dos filhos de pessoas casadas entre si, e, nessa extensão, atribui tal condição à situação em que os filhos são gerados com a utilização de embriões excedentários, decorrentes de concepção homóloga, omitindo-se, contudo, quanto à forma legalmente prevista para utilização do material genético post mortem. 12. A decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia. 13. A declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, haverá de ser efetivada por testamento ou por documento análogo. 14. Recursos especiais providos. (STJ. REsp 1.918.421-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 08/06/2021, DJe 26/08/2021. - Publicado no Informativo nº 706)