STJ. REsp 1.536.035-PR

Enunciado: A questão controvertida consiste em saber se é possível o protesto de cheques endossados após o prazo de apresentação. Sobre o tema, o cheque endossado - meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito -, que se desvincula da sua causa, conferindo ao endossatário as sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito, notadamente o da autonomia das obrigações cambiais - confere, em benefício do endossatário, ainda em caso de endosso póstumo (art. 27 da Lei do Cheque), os efeitos de cessão de crédito. Por isso, em se tratando de cheque "à ordem", como o art. 903 do Código Civil, textualmente, prescreve que, em caso de conflito aparente com as normas albergadas pelo Diploma civilista, devem ser observadas as normas especiais relativas aos títulos de crédito, fica límpido que não é necessária nenhuma outra formalidade para que exsurjam os mesmos efeitos de cessão de crédito. Em suma, embora o título de crédito, com a sua emissão, liberte-se da relação fundamental, em vista do princípio da incorporação, o adimplemento da obrigação cambial tem por consequência extinguir a obrigação subjacente que ensejou a sua emissão, sendo, em regra, pro solvendo; de modo que, salvo pactuação em contrário, só extingue a dívida, isto é, a obrigação que o título visa satisfazer consubstanciada em pagamento de importância em dinheiro, com o seu efetivo pagamento. Com efeito, a menos que o emitente do cheque tenha aposto no título a cláusula "não à ordem" - hipótese em que o título somente se transfere pela forma de cessão de crédito -, o endosso, no interesse do endossatário, tem efeito de cessão de crédito, não havendo cogitar, por exemplo, de observância da forma necessária à cessão ordinária civil de crédito. Nessa linha, cumpre verificar que o cheque é ordem de pagamento à vista, sendo de 6 (seis) meses o lapso prescricional para a execução após o prazo de apresentação, que é de 30 (trinta) dias a contar da emissão, se da mesma praça, ou de 60 (sessenta) dias, também a contar da emissão, se consta no título como sacado em praça diversa, isto é, em município distinto daquele em que se situa a agência pagadora, nos termos da norma especial de regência (Lei do Cheque). Assim, se ocorre a prescrição para execução do cheque, o artigo 61 da Lei do Cheque prevê, no prazo de 2 (dois) anos, a possibilidade de ajuizamento de ação de locupletamento ilícito que, por ostentar natureza cambial, prescinde da descrição do negócio jurídico subjacente. Expirado o prazo para ajuizamento da ação por enriquecimento sem causa, o artigo 62 do mesmo Diploma legal ressalva a possibilidade de ajuizamento de ação fundada na relação causal, in verbis: "salvo prova de novação, a emissão ou a transferência do cheque não exclui a ação fundada na relação causal, feita a prova do não-pagamento". No entanto, o protesto do cheque, com apontamento do nome do devedor principal, é facultativo e, como o título tem por característica intrínseca a inafastável relação entre o emitente e a instituição financeira sacada, é indispensável a prévia apresentação da cártula; não só para que se possa proceder à execução do título, mas também para se cogitar do protesto. Evidentemente, é também vedado o apontamento de cheques quando tiverem sido devolvidos pelo banco sacado por motivo de furto, roubo ou extravio das folhas ou talonários, contanto que não tenham circulado por meio de endosso nem estejam garantidos por aval, pois, nessas hipóteses, desde que não esgotado o prazo para a ação cambial de execução, far-se-á o protesto sem fazer constar os dados do emitente da cártula. Com efeito, o protesto de cheques endossados após o prazo de apresentação é irregular, pois, de fato, o art. 1º, da Lei n. 9.492/1997, estabelece que protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, portanto, a interpretação mais adequada, inclusive tendo em vista os efeitos do protesto, é o de que o termo "dívida" exprime débito, consistente em obrigação pecuniária, líquida, certa e que é/se tornou exigível.

Tese Firmada: Não é possível o protesto de cheques endossados após o prazo de apresentação.

Questão Jurídica: Protesto irregular de título de crédito. Registro após a prescrição. Impossibilidade.

Ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO, PROTESTO E RESPONSABILIDADE CIVIL. TÍTULO DE CRÉDITO. ENDOSSO. EFEITO, NO INTERESSE DO ENDOSSATÁRIO, DE CESSÃO DE CRÉDITO. CHEQUE. PRAZO PARA PROTESTO. EXECUÇÃO CAMBIAL. INEXISTÊNCIA DE PERDA DA PRETENSÃO CONDENATÓRIA REFERENTE AO NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE AO CHEQUE. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR, SEM QUE TENHA HAVIDO DANO INJUSTO. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES DA TERCEIRA TURMA E OVERRULING DESSE COLEGIADO. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DA PARTE. CONDUTA ILÍCITA. 1. Por um lado, embora o título de crédito, com a sua emissão, liberte-se da relação fundamental, em vista do princípio da incorporação, o adimplemento da obrigação cambial tem por consequência extinguir a obrigação subjacente que ensejou a sua emissão, sendo, em regra, pro solvendo. Desse modo, salvo pactuação em contrário, só extingue a dívida, isto é, a obrigação que o título visa satisfazer, consubstanciada em pagamento de importância em dinheiro, com o seu efetivo pagamento. Por outro lado, malgrado a inexistência de negócio entabulado entre as partes litigantes - emissor do cheque e endossatário -, os cheques foram endossados ao réu, que apontou os títulos a protesto. Como o título de crédito foi endossado - meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito -, desvincula-se da sua causa, conferindo os efeitos de cessão de crédito em benefício do endossatário, a par das sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito. 2. À luz do entendimento consolidado no âmbito do STJ, o protesto é irregular, pois, de fato, o art. 1º da Lei n. 9.492/1997, estabelece que protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida, isto é, débito consistente em obrigação pecuniária, líquida, certa e que é ou tornou-se exigível. Nessa linha de intelecção, a Segunda Seção, em recurso repetitivo, firmou o entendimento de que "sempre será possível, no prazo para a execução cambial, o protesto cambiário de cheque, com a indicação do emitente como devedor" (REsp n. 1.423.464/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 27/4/2016, DJe 27/5/2016). 3. O art. 186 do CC estabelece que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem comete ato ilícito. O art. 927, parágrafo único, do mesmo Diploma orienta que aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Já o art. 944 do CC dispõe que a indenização mede-se pela extensão do dano. Assim, para caracterizar obrigação de indenizar, não é decisiva a questão da ilicitude da conduta, mas sim a constatação efetiva do dano a bem jurídico tutelado, não sendo suficiente tão somente a prática de um fato contra legem ou contra jus ou que contrarie o padrão jurídico das condutas. 4. Os cheques foram protestados sem que tenha sido suplantado o período de 5 anos a contar da data de emissão das cártulas, isto é, quando, conforme juízo sufragado em recurso repetitivo, seria ainda possível o ajuizamento de ação monitória, pois "o prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula" (REsp n. 1.101.412/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 11/12/2013, DJe 3/2/2014). Com efeito, em vista da existência de pretensão referente à obrigação causal (negócio jurídico subjacente à emissão dos títulos de crédito), não há falar em abalo de crédito, na medida em que o emitente permanece na condição de devedor e o dano moral decorrente de protesto irregular está atrelado à ideia de indevido abalo do crédito pela pecha de "mau pagador". Precedentes da Terceira Turma. 5. O autor permanece inadimplente e tenta valer-se de irregularidade do protesto para obter compensação de alegados "danos" morais; todavia, por ocasião do apontamento a protesto, ainda remanescia incontroverso débito e a possibilidade de o credor se valer de uma possível sentença condenatória em ação de cobrança dos cheques, inclusive para igualmente promover um futuro apontamento do nome do devedor a protesto. Ainda, se o protesto tivesse sido realizado no prazo para execução cambial do cheque, permaneceria hígido a igualmente ocasionar o alegado "dano moral", sem que se pudesse cogitar no seu cancelamento, considerando-se também que o art. 27 da Lei n. 9.492/1997 dispõe que o tabelião de protesto expedirá certidões "que abrangerão o período mínimo dos cinco anos anteriores, contados da data do pedido". 6. Não só não houve efetivo dano ocasionado, como é certo que o autor não nega que deve, tampouco manifesta intenção de adimplir o débito. Sendo assim, o art. 187 do Código Civil estabelece que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 7. Como anota a doutrina, a constatação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) deve orientar-se para a análise global ou integrada do fenômeno fático-jurídico consistente no comportamento lesivo à boa-fé. Isso porque: a) o comportamento contraditório reveste-se de aparente licitude; b) prima facie, sugere estrita observância a regras jurídicas, estando em aparente conformidade com o direito positivo; c) destacando-se o comportamento contraditório da conduta que precede e esquecendo-se do enlace entre ambos que justifica sua adjetivação, ele seria um ato lícito; d) o que faz dele um comportamento contrário ao Direito é sua relação com os atos anteriores que revela uma contradição ao sentido objetivo ou ao projeto de atuação anunciado pela conduta inicial lesiva à boa-fé e à confiança depositada por terceiros na seriedade desse agir; e) a aplicação da teoria destina-se aos comportamentos aparentemente lícitos carecedores de regras específicas de regulação proibitivas e que, para isso, dificultam sua identificação como contrários ao Direito, exsurgindo daí a necessidade de uma construção teórica voltada à concretização da pauta dos princípios da boa-fé e da confiança. 8. Recurso especial parcialmente provido, apenas para determinar o cancelamento do protesto irregular. (STJ. REsp 1.536.035-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 26/10/2021. - Publicado no Informativo nº 717)