STJ. HC 583.837-SC

Enunciado: Cinge-se a controvérsia a definir a aplicação retroativa ou não do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Uma análise necessária diz respeito ao caráter da norma que insere condição de procedibilidade, como regra, para persecução penal do delito de estelionato: se penal ou processual, e o consequente regime jurídico a que submetido, se penal ou processual. Há razoável consenso doutrinário acerca da natureza dessa disciplina: as normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes no Código de Processo Penal, são de caráter misto, regidas assim pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva, como reconhecido pela Quinta Turma no HC 573.093/SC. Assim, diante do advento de nova disciplina, a vigência da norma mais antiga ou mais nova será determinada pelos benefícios proporcionados ao réu no caso concreto. Caso a nova espécie de ação se apresente mais benéfica, deverá retroagir. Entre as três espécies de ação penal há uma notória gradação: enquanto a ação penal de iniciativa privada obedece ao princípio da disponibilidade, estando submetida a causas específicas de extinção da punibilidade, como a renúncia, o perdão, a decadência, por exemplo, a ação penal pública incondicionada observa o princípio da indisponibilidade, sendo a persecução penal deflagrada de ofício pelo aparato oficial público. A ação penal pública condicionada à representação, por sua vez, observa o princípio da disponibilidade até o oferecimento da ação penal, que, uma vez instaurada, adquire o caráter de ação penal pública com desenvolvimento ex officio, não admitindo mais retratação. Pode-se, assim, afirmar que a ação penal pública incondicionada é mais gravosa ao acusado, enquanto a ação privada é menos gravosa, estando a ação pública condicionada à representação em posição intermediária. Diante de tal quadro, parece notório que o § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.694/2019, é norma mais benéfica em relação ao regime anterior. E, pelo caráter misto, alcança casos anteriores à sua vigência. Há, no entanto, um claro limite à retroatividade do dispositivo: o trânsito em julgado da ação penal. A partir desse momento processual não há falar mais em exercício do direito de ação, que se esgota com o pronunciamento definitivo sobre o mérito da ação; instaura-se a pretensão executória, no qual o direito de punir já é juridicamente certo, não havendo espaço para discussão sobre a natureza da ação penal do título. O direito de executar a pena, saliente-se, não se submete a tais condicionantes, tampouco pode ser exercido de forma privada, cabendo apenas ao Estado exercê-lo, sem influência da vontade privada. Considerado tal limite, a retroação da norma em questão alcança todos os processos em curso, sem trânsito em julgado. Tal retroação não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Verifica-se, entretanto, uma omissão legislativa ao disciplinar os conflitos decorrentes da lei no tempo, passíveis de solução pela via interpretativa. A Lei n. 9.099/1995, em seu art. 91, trouxe disciplina para questão semelhante. Ao transformar a ação penal dos crimes de menor potencial ofensivo de ação pública incondicionada para pública condicionada à representação, determinou a intimação do ofendido ou do seu representante legal para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência. Tal solução, é mais equânime com os cânones do direito penal e do processual penal. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.

Tese Firmada: A retroatividade da representação no crime de estelionato alcança todos os processos ainda não transitados em julgado.

Questão Jurídica: Crime de estelionato. Regra do § 5º do art. 171 do Código Penal acrescentada pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Ação penal pública condicionada à representação como regra. Nova lei mais benéfica. Processos ainda não transitados em julgado. Retroatividade.

Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA. 1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva. 2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa. 3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu. 4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia. 5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão. 6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099/1995. (STJ. HC 583.837-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 04/08/2020, DJe 12/08/2020 - Publicado no Informativo nº 677)