STF. AP 1021/DF

Tese Firmada: A Primeira Turma julgou procedente pedido formulado em ação penal para condenar deputado federal pela prática do crime de difamação agravada. Cuida-se de ação penal privada promovida contra parlamentar em cujo perfil de rede social foi publicado vídeo editado com cortes de trechos de discurso feito pelo autor, então deputado federal, a fim de difamá-lo (Informativo 876). Inicialmente, o colegiado assentou que as alegações de inépcia da inicial e de incidência da imunidade parlamentar já tinham sido rejeitadas quando do recebimento da queixa-crime. Na espécie, não se aplica a imunidade parlamentar, pois o ato não foi praticado in officio ou propter officium. Reiterou que a liberdade de opinião e manifestação do parlamentar, ratione muneris, impõe contornos à imunidade material, nos limites estritamente necessários à defesa do mandato contra o arbítrio, à luz do princípio republicano que norteia a Constituição Federal (CF). De igual modo, a veiculação dolosa de vídeo com conteúdo fraudulento, para fins difamatórios, a conferir ampla divulgação pela rede social ao conteúdo sabidamente falso, não encontra abrigo na imunidade parlamentar [CF, art. 53 (1)]. No mérito, foi assentada a comprovação da materialidade do delito. Laudo de perícia criminal de instituto de criminalística da polícia civil concluiu que o vídeo foi editado e que o processo de edição resultou na modificação da informação, conduzindo à compreensão diversa da realidade factual. A Turma realçou que o conteúdo original da manifestação sofreu vários cortes, após os quais passou a revelar conotação racista e preconceituosa. O fato de veicular trechos da fala do autor é elemento especioso, ardil empregado com o intuito de conferir-lhe verossimilhança. Além disso, o dano à honra do querelante foi certificado em juízo por depoimentos prestados. Simultaneamente, há prova do impacto sobre a imagem do autor. A fraude revela nítido potencial de enganar os cidadãos que a visualizaram e de produzir discursos de ódio contra a fala indevidamente alterada, difamando o opositor político do réu. Noutro passo, assinalou que a publicação em perfil de rede social é penalmente imputável ao agente que, dolosamente, tem o intuito de difamar, injuriar ou caluniar terceiros, máxime quando demonstrado o conhecimento da falsidade do conteúdo. A criminalização da veiculação de conteúdo com essas finalidades não colide com o direito fundamental à liberdade de expressão. Observou que o delito contra a honra é de ação múltipla, conglobando não apenas a criação do conteúdo criminoso como também a sua postagem e a disponibilização de perfil em rede social com fim de servir de plataforma à alavancagem da injúria, calúnia ou difamação. A autoria desses crimes praticados por meio da internet demanda: (i) demonstração de que o réu é o titular de página, blogue ou perfil pelo qual divulgado o material difamatório; (ii) demonstração do consentimento — prévio, concomitante ou sucessivo — com a veiculação em seu perfil; (iii) demonstração de que o réu tinha conhecimento do conteúdo fraudulento da postagem (animus injuriandi, caluniandi ou diffamandi). A divulgação do conteúdo fraudado constitui etapa da execução do crime, a estabelecer a autoria criminosa do divulgador, que não exclui a do programador visual ou do editor responsável pela execução material da fraude, quando promovidas por outros agentes em coautoria. Na circunstância de um ajudante postar vídeo fraudulento veiculador de difamação, a coautoria criminosa do titular do perfil somente é afastada se ele desconhecer o uso de sua página para a divulgação e, portanto, não consentir com o emprego de sua plataforma em rede social para alavancar a campanha difamatória. Na situação dos autos, os testemunhos colhidos na instrução corroboram a autoria criminosa. O referido vídeo foi postado no perfil do acusado, que admitiu tê-lo assistido e ter sido informado da postagem quando foi disponibilizado em sua página na rede social. O réu sabia que o conteúdo não era fidedigno à fala do querelante, porquanto se tratava de manifestação absolutamente contrária à proferida em debate do qual ele próprio participara e cujo conteúdo era de seu inteiro conhecimento. Ainda assim, o parlamentar-querelado manteve o conteúdo difamatório disponível em sua plataforma, que somente foi retirado de circulação após decisão judicial. Ademais, o vídeo fraudulento elevou a popularidade do réu na rede social utilizada, revelando número de visualizações superior à média de sua página, a evidenciar seu ganho pessoal com a campanha difamatória. Ao rechaçar tese defensiva da ausência de dolo de difamar, o colegiado anotou que as alegações não se sustentam. A divulgação por mero animus narrandi se caracteriza quando há desconhecimento da natureza fraudulenta. Na espécie, o réu detinha todas as informações necessárias para conhecer o descompasso entre o discurso proferido e o divulgado no vídeo com adulterações aptas a inverter o sentido da fala e conferir-lhe teor racista. Igualmente inverossímil a arguição de que os cortes realizados tiveram finalidade exclusivamente técnica, com o objetivo de reduzir o vídeo ao tamanho limite do suporte de mídia utilizado. Se essa fosse unicamente a intenção, os cortes não teriam deturpado a fala do querelante. Outros trechos poderiam ter sido excluídos para atender ao propósito técnico. Em sede de dosimetria, a Turma considerou presentes quatro circunstâncias judiciais negativas. Cominou reprimenda de um ano de detenção, no regime inicial aberto, cumulada com pena de multa. Diante de pressupostos legais, substituiu a pena privativa de liberdade por prestação pecuniária, na forma do art. 45, § 1º, do Código Penal (CP) (2), consistente no pagamento de trinta salários mínimos à vítima, fixado como montante mínimo para reparação dos danos causados pela infração. Vencido o ministro Marco Aurélio quanto à fixação de regime aberto para cumprimento inicial da reprimenda e à substituição da pena privativa de liberdade. Segundo o ministro, o regime aberto é reservado a situações em que as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (3) são favoráveis ao acusado e o relator apontou haver quatro situações contrárias ao réu. Além disso, o ministro compreendeu que o inciso III do art. 44 do CP (4) afasta, considerado o objetivo da norma, a possibilidade de, ante circunstâncias judiciais negativas, proceder-se à substituição da pena por restritiva de direitos. (1) CF: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” (2) CP: “Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48. § 1º A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários.” (3) CP: “Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:” (4) CP: “Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (...) III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.”

Questão Jurídica: Ação penal privada: difamação, vídeo com conteúdo fraudulento e divulgação em rede social de parlamentar

Ementa: PENAL E PROCESSO PENAL. AÇÃO PENAL PRIVADA. CRIME DE DIFAMAÇÃO. ART. 139 DO CÓDIGO PENAL. PRELIMINAR DE INÉPCIA DA QUEIXA-CRIME REJEITADA. IMUNIDADE PARLAMENTAR. NÃO INCIDÊNCIA. PUBLICAÇÃO DE VÍDEO EDITADO MEDIANTE CORTES, ATRIBUINDO-LHE CONTEÚDO RACISTA INEXISTENTE NA FALA ORIGINAL. COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA. CONFIGURAÇÃO DO ANIMUS DIFFAMANDI. AÇÃO PENAL JULGADA PROCEDENTE. 1. PRELIMINAR (a) A inépcia da inicial acusatória, devidamente afastada pelo órgão julgador no recebimento da queixa-crime, é matéria preclusa. (b) In casu, constou do acórdão de recebimento da queixa-crime: “Da análise do vídeo em questão, é possível, a princípio, determinar o fato objetivamente imputado, não sendo este o momento adequado para se tecer maiores considerações sobre o mérito da controvérsia. Preenchidos, desse modo, os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal”. (c) Preliminar rejeitada. 2. PREJUDICIAL DE MÉRITO (a) A imunidade parlamentar teve sua incidência afastada no caso ora em julgamento, por ocasião do recebimento da exordial acusatória. (b) A imunidade parlamentar exige, para sua incidência, que o ato incriminado tenha sido praticado in officio ou propter officio. Os atos delituosos praticados fora do recinto do parlamento e desvinculados do exercício da função não se encontram ao abrigo da imunidade material. Precedentes (Inq. 3932 e Pet 5243, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 9/9/2016; Inq. 3438, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 10/2/2015; Inq. 3672, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 21/11/2014; RE 299.109-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 1º/6/2011). (c) A veiculação dolosa de vídeo com conteúdo fraudulento, para fins difamatórios, conferindo ampla divulgação (rede social) a conteúdo sabidamente falso, não encontra abrigo na nobre garantia constitucional da imunidade parlamentar, insculpida no artigo 53 da Lei Maior, e que protege a liberdade e independência dos eleitos para defender suas opiniões mediante suas palavras e votos. (d) No acórdão de recebimento da inicial, restou assentado que “A liberdade de opinião e manifestação do parlamentar, ratione muneris, impõe contornos à imunidade material, nos limites estritamente necessários à defesa do mandato contra o arbítrio, à luz do princípio republicano que norteia a Constituição Federal”. (e) Prejudicial rejeitada. 3. MÉRITO (a) In casu, (a) o Deputado Federal Jean Wyllys de Matos Santos imputou ao Deputado Federal Eder Mauro a prática de crime de difamação agravada (artigos 139 c/c art. 141, II e III, do Código Penal), consistente em publicação ofensiva à honra do querelante, divulgada na página do querelado no Facebook. (b) Com efeito, consta dos autos que, durante reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura a Violência contra jovens e negros pobres no Brasil, realizada em 14 de maio de 2015, da qual participaram tanto o réu como o Autor, este último, Deputado Federal Jean Wyllys, fez uso da palavra para tecer as seguintes considerações: “E aí a fala da Tatiana foi muito importante, porque ela traz essa dimensão histórica, que envolve a escravidão de negros; depois, a abolição, sem nenhuma política de inclusão no mercado de trabalho, a exclusão territorial; e, depois, toda uma produção de sentido que desqualifica essa comunidade como humana. Então, há um imaginário impregnado, sobretudo nos agentes das forças de segurança, de que uma pessoa negra e pobre é potencialmente perigosa, é mais perigosa do que uma pessoa branca de classe média. Esse é um imaginário que está impregnado na gente, uma dimensão aí. E os policiais partem desse imaginário” (pág. 37 das notas taquigráficas da CPI – Violência contra jovens negros e pobres). (c) Cinco dias depois, em 19 de maio de 2015, o réu, Deputado Federal Eder Mauro, publicou em seu perfil do Facebook um vídeo contendo trecho recortado da referida fala, previamente editado de modo a inverter seu conteúdo. No conteúdo fraudulento veiculado, o Deputado Federal Jean Wyllys aparece falando o seguinte: “Uma pessoa negra e pobre é potencialmente perigosa, é mais perigosa do que uma pessoa branca de classe média, essa é a verdade, então, dito isso...”. (d) Em síntese, o Réu é acusado de ter divulgado vídeo editado de modo a dolosamente atribuir-lhe conteúdo racista e preconceituoso, com finalidade de difamar a honra do Querelante. (e) O vídeo com trecho cortado e editado da fala do Parlamentar Autor foi publicado no Facebook e recebeu 14.834 aprovações (“curtidas”), 252.458 visualizações e 12.272 compartilhamentos. O conteúdo fraudulento somente foi excluído da página do Querelado Eder Mauro no Facebook por determinação da Justiça (decisão pública da 14ª Vara Cível de Brasília/DF, de 28 de agosto de 2015, disponível em: http://www.omci.org.br/m/jurisprudencias/arquivos/2017/df_00209599520158070001_28082015.pdf 4. (a) A defesa alega a veracidade do conteúdo do vídeo divulgado pelo réu, que tão-somente reproduziu trecho de debate parlamentar no âmbito de CPI da Câmara dos Deputados. (b) Nada obstante, o Laudo de Perícia Criminal 17.454/2017 (fls. 84/110) do Instituto de Criminalística da Polícia Civil do Distrito Federal, concluiu que “o vídeo questionado foi editado” e “que o processo de edição do vídeo questionado resultou na modificação da informação auditiva da fala do Deputado Jean Wyllys originalmente registrada no material padrão, conduzindo a uma compreensão diversa da realidade factual. Em outras palavras, o discurso do Deputado Jean Wyllys foi adulterado no vídeo questionado”. (c) O conteúdo original da manifestação sofreu vários cortes, após os quais passou a revelar conotação racista e preconceituosa, contrária ao seu sentido original. O fato de o vídeo veicular trechos da fala do Deputado Autor é o elemento especioso, precisamente o ardil empregado para conferir verossimilhança ao conteúdo, elemento mínimo de verdade necessário para impedir o público de duvidar da postagem e acreditar na mentira resultante da edição. (d) Depoimentos prestados em juízo certificaram o dano a honra do Autor: (d.1) “essas informações geraram um impacto substantivo e absolutamente negativo da fala do Deputado Jean Wyllys junto aos ativistas do movimento negro, aos ativistas dos movimentos sociais”; “Eu sou do Estado da Bahia, em que há uma força enorme do movimento negro, e eu, como militante, fui intensamente questionado por que não combati a fala do Deputado Jean. E eu tentava explicar que o contexto da fala não teria sido aquele produzido pelo vídeo” (depoimento do Deputado Federal Adalberto Souza Galvão); (d.2) “isso é um estrago muito profundo. Porque o deputado que tem esta bandeira, que é eleito com essa bandeira, que seu eleitorado aporta o voto, lhe oferta o voto em função desta bandeira que ele tem e isso é desse desconstruído através do vídeo” (depoimento da Deputada Federal Érica Kokay). (f) Simultaneamente, há prova nos autos do impacto sobre a imagem do Autor, como se extrai da ampla circulação conferida ao vídeo fraudulento a partir do perfil do Réu no Facebook, observando exclusivamente os dados existentes na sua página, a partir da qual houve o indevido propulsionamento do conteúdo falso. Ademais, a fraude revela nítido potencial de enganar os cidadãos que a visualizaram e de produzir discursos de ódio contra a fala indevidamente alterada, difamando seu opositor político. (g) Consectariamente, restou comprovada a materialidade do crime de difamação. 5. (a) A publicação em perfil de rede social é penalmente imputável ao agente que, dolosamente, tem o intuito de difamar, injuriar ou caluniar terceiros, máxime quando esteja demonstrado o conhecimento da falsidade do conteúdo. (b) Inviável desresponsabilizar autores de perfis utilizados para a disseminação dolosa de campanhas difamatórias, caluniosas ou injuriosas nas redes sociais, fundadas em conteúdos falsos. (c) É irrelevante, para fins de determinação da autoria, o anonimato do “criador do conteúdo” (editor ou programador visual, por exemplo) ou da terceirização das postagens (perfil administrado por um preposto) pelo titular do perfil utilizado para divulgar a notícia falsa. Revela-se bastante e suficiente, para fins de determinação da autoria dolosa, a demonstração do conhecimento do titular do perfil quanto à fraude do conteúdo e sua intenção de causar danos à honra das vítimas. 6. (a) No dizer de John Stuart Mill, opiniões equivocadas devem ser protegidas, enquanto tais, pois mesmo elas contribuem, no procedimento dialógico da sua refutação, para o debate e o esclarecimento da verdade: “(…) a opinião que se tenta suprimir por meio da autoridade talvez seja verdadeira. Os que desejam suprimi-la negam, sem dúvida, a sua verdade, mas eles não são infalíveis. Não têm autoridade para decidir a questão por toda a humanidade, nem para excluir os outros das instâncias do julgamento. Negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que é falsa, é presumir que a própria certeza seja o mesmo que certeza absoluta. Impor silêncio a uma discussão é sempre arrogar-se infalibilidade”. E conclui: “Se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem de quase tanto valor — a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro” (John Stuart Mill, On Liberty, capítulo 1). (b) A liberdade de expressão no debate democrático distingue-se, indubitavelmente, da veiculação dolosa de conteúdos voltados a simplesmente alterar a verdade factual e, assim, alcançar finalidade criminosa de natureza difamatória, caluniosa ou injuriosa. (c) A alavancagem de conteúdos fraudulentos, mediante artifício ardilosamente voltado à destruição da honra de terceiros nas redes sociais, revela alto potencial lesivo, tolhendo, até mesmo, o exercício de outros direitos fundamentais das vítimas - direitos políticos, liberdade de locomoção e, no limite, integridade física e direito à vida, não revelando qualquer interesse em contribuir para ganhos na construção de uma sociedade democrática. (d) As instituições democráticas e os objetivos fundamentais da República, anunciados no preâmbulo da Constituição de 1988, dependem da compreensão compartilhada no sentido de que, na letra da nossa Lei Fundadora, “nós, o povo brasileiro, nos reunimos para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. (e) A Constituição, no Estado Democrático de Direito, é o norte do Estado Juiz na verificação da regularidade do exercício do direito fundamental à liberdade de expressão. (f) A criminalização da veiculação de conteúdo com finalidade difamatória, caluniosa ou injuriosa não colide com o direito fundamental à liberdade de expressão, que resta protegida também nos casos de desconhecimento da manipulação fraudulenta do conteúdo, a caracterizar hipótese de erro, que exclui a ilicitude (artigo 20, §1º, do Código Penal). 7. (a) O delito contra a honra é de ação múltipla, conglobando não apenas a criação do conteúdo criminoso voltada à divulgação como também a sua postagem (“upload”, carregamento do vídeo na rede social) e a disponibilização de perfil em rede social com fim de servir de plataforma à alavancagem da injúria, calúnia ou difamação, tendo por elemento especial do tipo o dano à honra da vítima. (b) A autoria dos crimes contra a honra praticados por meio da internet demanda: (b.1) demonstração de que o réu é o titular da página, blog ou perfil pelo qual o conteúdo difamatório foi divulgado; (b.2) demonstração do consentimento, prévio, concomitante ou sucessivo, com a veiculação da publicação difamatória em seu perfil; (b.3) animus injuriandi, caluniandi ou diffamandi, que demandam a demonstração de que o réu tinha conhecimento do conteúdo fraudulento da postagem. 8. (a) In casu, a defesa sustenta duas teses com propósito de refutar ou gerar dúvida razoável quanto à autoria: (a.1) transfere para terceiros a responsabilidade pela edição; (a.2) transfere para terceiros a responsabilidade pela divulgação do vídeo em seu perfil no Facebook. (b) Em seu interrogatório judicial, o réu afirmou ter visualizado o conteúdo do vídeo e ter sido comunicado da respectiva publicação em seu perfil no Facebook. (c) Como fiz constar de meu voto de recebimento da Queixa-Crime, “Na lição especializada de Jacques Aumont e Michel Marie, na obra ‘Dicionário teórico e crítico de cinema’, a edição ou montagem ‘tem por objetivo guiar o espectador, permitir-lhe seguir a narrativa facilmente’ e ‘pode, também, produzir outros efeitos: efeitos sintáticos ou de pontuação, marcando, por exemplo, uma ligação ou uma disjunção; efeitos figurais, podendo, por exemplo, estabelecer uma relação de metáfora; [...] entre outros’” (AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 2ª ed. Campinas: Papirus, 2006, p. 196). (d) Restou evidenciado o conhecimento da edição voltada à adulteração do conteúdo por parte do Réu, porquanto se tratava de manifestação absolutamente contrária à proferida pelo parlamentar Autor, em debate do qual o próprio réu participou e cujo conteúdo era de seu inteiro conhecimento. Aliás, provou-se, no interrogatório judicial, a plena consciência do Réu de que o vídeo divulgado em seu perfil no Facebook, com centenas de milhares de visualizações, atribuía ao Autor, Jean Wyllys, ideias diametralmente opostas às que identificam a plataforma política deste parlamentar. (e) A divulgação do conteúdo fraudado, invertendo-lhe o sentido com finalidade de difamar o Autor, constitui etapa da execução do crime, estabelecendo a autoria criminosa do divulgador, a qual não exclui a do programador visual ou do editor responsável pela execução material da fraude, quando promovidas por outros agentes em coautoria. (f) A segunda linha argumentativa da defesa, que surgiu no interrogatório judicial, é a de que o vídeo foi divulgado por um ajudante no perfil do réu no Facebook. (g) A tese revela fragilidades, inabilitando-se como fonte de dúvida razoável quanto aos fatos: (g.1) a defesa não pediu a oitiva do mencionado ajudante nos autos na qualidade de testemunha e, demais disso, o réu alegou não se lembrar do sobrenome dessa pessoa, inviabilizando a confirmação da própria existência do álibi pelo juízo; (g.2) ainda que um “ajudante” houvesse, de fato, postado o vídeo fraudulento veiculador da difamação, a coautoria criminosa do titular do perfil do Facebook somente seria afastada se o réu desconhecesse o uso de sua página para a veiculação e, portanto, não tivesse consentido com o emprego de sua plataforma em rede social para alavancar campanha difamatória contra o Autor; (h) In casu, (h.1) o vídeo foi postado no perfil do acusado no Facebook; (h.2) o réu admitiu ter assistido ao vídeo; (h.3) o réu admitiu ter sido informado da postagem quando o vídeo foi disponibilizado em sua página no Facebook; (h.4) o réu sabia que o conteúdo não era fidedigno à fala do Parlamentar Autor e manteve, ainda assim, o conteúdo difamatório disponível em seu perfil no Facebook; (h.5) Conforme apontou a d. Procuradoria-Geral da República, o “vídeo só foi retirado de circulação após decisão judicial” (decisão pública da 14ª Vara Cível de Brasília/DF, de 28 de agosto de 2015, disponível em: http://www.omci.org.br/m/jurisprudencias/arquivos/2017/df_00209599520158070001_28082015.pdf (h.6) o vídeo fraudulento elevou a popularidade do réu na rede social utilizada, revelando número de visualizações superior à média de sua página, a revelar seu ganho pessoal com a campanha difamatória. (i) Os testemunhos colhidos durante a instrução da ação penal, corroboram a autoria criminosa, destacando-se os seguintes trechos de depoimentos prestados em juízo: (i.1) “Ah, sim, o vídeo que ele fez, porque ele dizia o seguinte: Mas ele falou isso, eu não falei nada, eu não divulguei nada que ele não tenha falado” (Deputada Federal Érika Kokay); (ii.2) “Com os debates, no âmbito da própria CPI, chegou-se... não posso afirmar, porque não vi ele produzindo a alteração, mas todas as informações levaram a um juízo de valor de que a autoria teria sido do próprio Deputado Éder Mauro” (Deputado Federal Adalberto Souza Galvão); (iii.3) “o primeiro pronunciamento dele sobre essa publicação era, justamente, reforçando a publicação, ou seja, ele foi ao Plenário da Câmara afirmar que eu havia dito aquilo que estava na publicação dele” (depoimento da vítima). 9. (a) O elemento subjetivo do tipo do crime de difamação é o animus diffamandi. (b) In casu, a defesa sustentou ausência de dolo de difamar, por dois fundamentos: (b.1) alegou que o vídeo “continha palavras do próprio querelante” e que estaria presente mero animus narrandi; (b.2) sustentou que os cortes realizados no vídeo tiveram finalidade exclusivamente técnica, com o único fim de reduzi-lo, para adequá-lo ao tamanho limite do suporte de mídia utilizado para veiculação. (c) As alegações não se sustentam: (c.1) Primeiramente, restou demonstrado que, embora o vídeo reproduza trecho da fala do Querelante, o corte realizado inverteu-lhe o sentido, atribuindo-lhe conotação racista. O uso, pelo réu, de trechos da fala do próprio Parlamentar Querelante reforçou sua potencialidade difamatória, porquanto o único elemento de verdade contido no vídeo induziu o público à ilusão de que todo o conteúdo correspondia à realidade, típico artifício ardiloso empregado para a prática da difamação; (c.2) Portanto, ao contrário do que ocorre na divulgação regida por mero animus narrandi, que se caracteriza quando há desconhecimento de sua natureza fraudulenta, in casu o Acusado detinha todas as informações necessárias para conhecer o descompasso entre o discurso efetivamente proferido pelo Autor e aquele divulgado no vídeo por ele disponibilizado no Facebook, com adulterações aptas a inverter o sentido da fala e a conferir-lhe teor racista; (c.3) Inverossímil, ainda, a alegação defensiva de que os cortes realizados tiveram não finalidade difamatória, mas sim mera função de redução da extensão da fala do Deputado Querelante, para atender às exigências do suporte midiático utilizado para sua divulgação; (c.4) Deveras, se a intenção fosse unicamente reduzir o tamanho do vídeo, os cortes não teriam deturpado a fala do Querelante. Era possível excluir outros trechos da referida manifestação para atender ao propósito técnico, mas executou-se o corte cirurgicamente de modo a inverter diametralmente seu sentido. (d) Por fim, nas palavras da Procuradora-Geral da República, “caso o querelante estivesse realmente de boa-fé, tendo sido surpreendido com o fato, teria corrigido imediatamente e publicado alguma nota aclaratória e de desculpa sobre o ocorrido, atitude não tomada até o momento”. (e) Conclui-se que as provas colhidas nos autos comprovaram, além de qualquer dúvida razoável, a materialidade e a autoria delitivas, assim como o elemento subjetivo do tipo. 10. Ex positis, julgo procedente a acusação para condenar o réu Éder Mauro pela prática do crime de difamação agravada. 11. (a) Em sede de dosimetria, considero presentes quatro circunstâncias judiciais negativas, a conduzir a pena-base para 9 meses de detenção; ausentes atenuantes e agravantes, aplico a causa de aumento prevista no art. 141, III, do Código Penal (afasto, nos termos do art. 68, parágrafo único, a causa de aumento do inciso II do art. 141), alcançando a pena definitiva o total de 1 ano de detenção, no regime inicial aberto, e multa, no montante de 36 dias-multa, no valor de 1 salário mínimo cada. (b) Diante da presença dos pressupostos legais, substituo a pena privativa de liberdade pela de prestação pecuniária (art. 45, §1º, do CP), consistente no pagamento de 30 salários mínimos à vítima, que fixo como montante mínimo para reparação dos danos causados pela infração, nos termos do art. 387, IV, do Código de Processo Penal. (AP 1021, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/08/2020, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-254 DIVULG 20-10-2020 PUBLIC 21-10-2020)