STF. ADPF 460/PR

Tese Firmada: A competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (artigo 22, XXIV, da Constituição Federal) impede que leis estaduais, distritais e municipais estabeleçam princípios e regras gerais sobre ensino e educação, cabendo-lhes somente editar regras e condições específicas para a adequação da lei nacional à realidade local (artigos 24, §§ 1º e 2º, e 30, I e II, CRFB). A vedação da abordagem dos temas de “gênero” e de “orientação sexual” no âmbito escolar viola os princípios da liberdade, enquanto pressuposto para a cidadania; da liberdade de ensinar e aprender; da valorização dos profissionais da educação escolar; da gestão democrática do ensino; do padrão de qualidade social do ensino; da livre manifestação do pensamento; e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigos 1º, II e V; 5º, IV e IX; e 206, II, V, VI e VII, da Constituição Federal).

Questão Jurídica: Inconstitucionalidade de leis estaduais ou municipais que cerceiem a liberdade de ensinar e aprender

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ARTIGO 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 6.496/2015 DO MUNICÍPIO DE CASCAVEL - PR. VEDAÇÃO DE “POLÍTICAS DE ENSINO QUE TENDAM A APLICAR A IDEOLOGIA DE GÊNERO, O TERMO ‘GÊNERO’ OU ‘ORIENTAÇÃO SEXUAL’”. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO. A PROIBIÇÃO GENÉRICA DE DETERMINADO CONTEÚDO, SUPOSTAMENTE DOUTRINADOR OU PROSELITISTA, DESVALORIZA O PROFESSOR, GERA PERSEGUIÇÕES NO AMBIENTE ESCOLAR, COMPROMETE O PLURALISMO DE IDEIAS, ESFRIA O DEBATE DEMOCRÁTICO E PRESTIGIA PERSPECTIVAS HEGEMÔNICAS POR VEZES SECTÁRIAS. A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE SOLIDÁRIA, LIVRE E JUSTA PERPASSA A CRIAÇÃO DE UM AMBIENTE DE TOLERÂNCIA, A VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E A CONVIVÊNCIA COM DIFERENTES VISÕES DE MUNDO. PRECEDENTES ARGUIÇÃO CONHECIDA E JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO. 1. A competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (artigo 22, XXIV, da Constituição Federal) impede que leis estaduais, distritais e municipais estabeleçam princípios e regras gerais sobre ensino e educação, cabendo-lhes somente editar regras e condições específicas para a adequação da lei nacional à realidade local (artigos 24, §§ 1º e 2º, e 30, I e II, CRFB). Precedentes: ADPF 457, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário, julgado em 24/4/2020; ADPF 526, Rel. Min. Cármen Lúcia, Plenário, julgado em 8/5/2020; e ADPF 467, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, julgado em 28/5/2020. 2. A vedação da abordagem dos temas de “gênero” e de “orientação sexual” no âmbito escolar viola os princípios da liberdade, enquanto pressuposto para a cidadania; da liberdade de ensinar e aprender; da valorização dos profissionais da educação escolar; da gestão democrática do ensino; do padrão de qualidade social do ensino; da livre manifestação do pensamento; e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigos 1º, II e V; 5º, IV e IX; e 206, II, V, VI e VII, da Constituição Federal). 3. A cidadania, fundamento da República Federativa do Brasil assim como o pluralismo político, está consagrada na Constituição ao lado de objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de combate à discriminação (artigos 1º, II e V; e 3º, I e IV, CRFB), sendo certo que o sistema político se funda na representação dos diversos setores da sociedade, todos com liberdade para alcançar o poder por meio de processo político livre e democrático e com educação que os habilite a exercer essa liberdade. 4. A neutralidade ideológica ou política pretendida pelo legislador municipal, ao vedar a abordagem dos temas de “gênero” e “orientação sexual”, esteriliza a participação social decorrente dos ensinamentos plurais adquiridos em âmbito escolar, mostrando-se não apenas inconstitucional, mas também incompatível com o nosso ordenamento jurídico. 5. Os artigos 205 e 206 da Constituição Federal e os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e em atos dos demais agentes públicos especializados consubstanciam o arcabouço normativo que se alinha harmoniosamente para a formação política do estudante, habilitando-o a exercer sua cidadania. 6. A renovação de ideias e perspectivas é um elemento caro à democracia política, consoante consta do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pelo Decreto 591, de 6 de julho de 1992, e no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), promulgado pelo Decreto 3.321, de 30 de dezembro de 1999, revelando exemplo de educação democrática. 7. O pluralismo de ideias, posto integrar o conceito de educação, constitui dever também da família, cabendo-lhe zelar pela liberdade de aprendizado e divulgação do pensamento, da arte e do saber, ao invés de condicionar à sua prévia concordância quanto ao conteúdo acadêmico, sob pena de esvaziar a capacidade de inovação, a oportunidade de o estudante construir um caminho próprio, diverso ou coincidente com o de seus pais ou professores. 8. A Constituição, para além do preparo para o exercício da cidadania, estabelece que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, visa ao pleno desenvolvimento da pessoa (artigo 205, CRFB). 9. A capacidade institucional da comunidade de especialistas em pedagogia, psicologia e educação, responsável pelo desenho de políticas públicas no setor, impõe a virtude passiva e a deferência do Poder Judiciário. Precedentes: RE 888.815, Relator p/ o acórdão Min. Alexandre de Moraes, Plenário, DJe de 21/3/2019; ADPF 292, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, julgado em 1º/8/2018; ADC 17, Relator p/ o acórdão Min. Roberto Barroso, Plenário, julgado em 1º/8/2018. 10. A escola assegura o olhar profissional sob as crianças e adolescentes, vez que professores, pedagogos e psicólogos aliam a expertise com a impessoalidade, necessárias para assegurar uma formação mais ampla do aluno. Não à toa, a Constituição previu a valorização dos profissionais da educação escolar como um dos princípios do ensino (artigo 206, V, CRFB). 11. A Constituição Federal de 1988 erigiu a liberdade acadêmica à condição de direito fundamental, notadamente por sua relação intrínseca e substancial com a liberdade de expressão, com o direito fundamental à educação e com o princípio democrático. No mesmo sentido, destaca o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, criado para avaliar o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos pelos países signatários. 12. A “gestão democrática do ensino público”, princípio previsto no artigo 206, VI, da CRFB, exige redobrada cautela quando se refere ao conteúdo programático da escola, vez que, ao permitir que as entidades religiosas e familiares ditem o conteúdo do ensino, o Estado legitimaria que as perspectivas hegemônicas se sobreponham às demais. 13. A liberdade dos pais de fazer que filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas convicções, prevista no artigo 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos, encontra limites nos princípios constitucionais que conformam o direito fundamental à educação, entre os quais se destacam a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (artigo 206, II e III, CRFB). 14. O Tribunal Constitucional Alemão, ao apreciar se a introdução da disciplina Educação Sexual em escolas públicas do ensino fundamental violaria norma da Lei Fundamental alemã que assegura aos pais direito natural de assistir e educar os filhos, assentou que, contanto que não haja proselitismo, a educação sexual integra o dever do Estado que não pode ser obstado pela vontade dos pais (BverfGE 47, 46, 21 de dezembro de 1977). 15. A “Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais” (2016) revela um cenário ainda bastante opressor: os expressivos casos de agressão verbal ou física por causa da orientação sexual e identidade de gênero provocam insegurança na escola, o que repercute na assiduidade do aluno e na evasão escolar. 16. É vedada a discriminação em razão do sexo, gênero ou orientação sexual. “Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual”. Precedente: ADI 4.277, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, DJe de 14/10/2011. 17. A escola, sob a dimensão negativa das obrigações estatais, vocaciona-se a ser locus da pluralidade, cabendo ao poder público, sob a dimensão positiva das liberdades individuais, ensinar tais valores e combater perspectivas sectárias e discriminatórias, o que se concretiza também por meio do convívio social com o diferente. 18. In casu, o parágrafo único do artigo 2º da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel - PR, que veda a adoção de “políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”, viola a Constituição Federal, vez que (i) o estabelecimento de regras sobre o conteúdo didático e a forma de ensino usurpa competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação; e que (ii) a proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias. 19. Arguição de descumprimento de preceito fundamental conhecida e julgado procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 2º da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel – PR. (ADPF 460, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-201 DIVULG 12-08-2020 PUBLIC 13-08-2020)