STJ. HC 830.530-SP

Enunciado: O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da Constituição Federal não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública e integram o Sistema Único de Segurança Pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias. Bombeiros militares, por exemplo, integram o rol de órgãos de segurança pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de drogas. O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza, nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins. Não se pode confundir "poder de polícia" com "poder das polícias" ou "poder policial". "Poder de polícia" é conceito de direito administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado pela doutrina como "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público". Já o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas de direitos. Um agente de vigilância sanitária, por exemplo, quando aplica multa e autua um restaurante por descumprimento a normas de higiene, o faz em exercício de seu poder de polícia, mas nem de longe se pode compará-lo com um agente policial que usa a força física para submeter alguém a uma revista pessoal. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é necessariamente exercido por um órgão policial. Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal. Ao dispor, no art. 301 do CPP, que "qualquer do povo poderá [...] prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito", o legislador, tendo em conta o princípio da autodefesa da sociedade e a impossibilidade de que o Estado seja onipresente, contemplou apenas os flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém. Distinta, no entanto, é a hipótese em que a situação de flagrante só é evidenciada depois de realizar atividades invasivas de polícia ostensiva ou investigativa, como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus semelhantes. A adequada interpretação do art. 244 do Código de Processo Penal é a de que a fundada suspeita de posse de corpo de delito é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para autorizar a realização de busca pessoal, porque não é a qualquer cidadão que é dada a possibilidade de avaliar a presença dele. Em outras palavras, mesmo se houver elementos concretos indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem e à revista do suspeito. Da mesma forma que os guardas municipais não são equiparáveis a policiais, também não são cidadãos comuns, de modo que, se, por um lado, não podem realizar tudo o que é autorizado às polícias, por outro, também não estão plenamente reduzidos à mera condição de "qualquer do povo". Trata-se de agentes públicos que desempenham atividade de segurança pública e são dotados do importante poder-dever de proteger os bens, serviços e instalações municipais, assim como os seus respectivos usuários. Dessa forma, é possível e recomendável que exerçam a vigilância, por exemplo, de creches, escolas e postos de saúde municipais, para garantir que não tenham sua estrutura danificada por vândalos, ou que seus frequentadores não sejam vítimas de furto, roubo ou algum tipo de violência, a fim de permitir a continuidade da prestação do serviço público municipal correlato a tais instalações. Nessa linha, guardas municipais podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade da corporação, sem que lhes seja autorizado atuar como verdadeira polícia para reprimir e investigar a criminalidade urbana ordinária. Não é das guardas municipais, mas sim das polícias, como regra, a competência para investigar, abordar e revistar indivíduos suspeitos da prática de tráfico de drogas ou de outros delitos cuja prática não atente de maneira clara, direta e imediata contra os bens, serviços e instalações municipais ou as pessoas que os estejam usando naquele momento. Poderão, todavia, realizar busca pessoal em situações excepcionais - e por isso interpretadas restritivamente - nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de suas atribuições. Vale dizer, salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários, o que não se confunde com permissão para desempenharem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária em qualquer contexto. No caso, guardas municipais estavam em patrulhamento quando depararam com o acusado em "atitude suspeita". Por isso, decidiram abordá-lo e, depois de revista pessoal, encontraram certa quantidade de drogas no bolso traseiro e nas vestes íntimas dele, o que ensejou a sua prisão em flagrante delito. Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art. 301 do CPP. Tanto que só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso e das vestes íntimas do abordado é que se deu voz de prisão em flagrante para ele, e não antes. Portanto, por não haver sido demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado.

Tese Firmada: O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da CF não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública e integram o Sistema Único de Segurança Pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias.

Questão Jurídica: Guardas municipais. Exercício de atividade de segurança pública que não se equipara por completo às polícias. Art. 301 do CPP. Flagrante delito. Tráfico de drogas. Não ocorrência. Art. 244 do CPP. Busca pessoal. Ausência de relação com as finalidades da guarda municipal. Impossibilidade. Prova ilícita.

Ementa: HABEAS CORPUS. ATUAÇÃO DAS GUARDAS MUNICIPAIS. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA QUE NÃO SE EQUIPARA POR COMPLETO ÀS POLÍCIAS. ART. 301 DO CPP. FLAGRANTE DELITO. TRÁFICO DE DROGAS. NÃO OCORRÊNCIA. ART. 244 DO CPP. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO COM AS FINALIDADES DA GUARDA MUNICIPAL. IMPOSSIBILIDADE. PROVA ILÍCITA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de polícia civil, como se fossem verdadeiras "polícias municipais". 2. Tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil - em contrapartida à possibilidade de exercerem a força pública e o monopólio estatal da violência - estão sujeitas a rígido controle correcional externo do Ministério Público (art. 129, VII, CF) e do Poder Judiciário (respectivamente da Justiça Militar e da Justiça Estadual), o que não acontece com as guardas municipais. Fossem elas verdadeiras polícias, por certo também deveriam estar sujeitas ao controle externo do Parquet e do Poder Judiciário, em correições periódicas. 3. Não é preciso ser dotado de grande criatividade para imaginar - em um país com suas conhecidas mazelas estruturais e culturais - o potencial caótico de se autorizar que cada um dos 5.570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao prefeito local e insubmissa a qualquer controle correcional externo. Ora, se mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros. 4. A exemplificar o patente desvirtuamento da atuação das guardas municipais na atualidade, cabe registrar que muitas delas estão alterando suas denominações para "Polícia Municipal". Ademais, inúmeros municípios pelo país afora - alguns até mesmo de porte bastante diminuto - estão equipando as suas guardas com fuzis, equipamentos de uso bélico e de alto poder letal. E, conforme demonstram diversas matérias jornalísticas, esse desvio de função vem sendo acompanhado pelo aumento da prática de abusos por guardas municipais. 5. O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da CF não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias. 6. O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza (vide RE n. 846.854/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 7/2/2018 e ADC n. 38/DF, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 18/5/2021), nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins. 7. O julgamento do AgR no MI n. 6.515/DF (Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Rel. p/ o acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 6/12/2018), apreciado em conjunto com os AgR nos MI n. 6.770/DF, 6.773/DF, 6.780/DF e 6.874/DF, de mesmo objeto, é exemplo claro disso. Para negar o pedido de concessão de aposentadoria especial aos integrantes das guardas municipais por equiparação às atividades de risco das polícias, afirmou-se que "a maior proximidade da atividade das guardas municipais com a área de segurança pública é inegável. No entanto, trata-se de uma atuação limitada, voltada à preservação do patrimônio municipal, e de caráter mais preventivo que repressivo", compreensão reiterada pelo Plenário da Corte no ARE n. 1.215.727/SP (Tema de Repercussão Geral n. 1.057, DJe 29/8/2019). Nesse mesmo caminho foi o julgamento do AgR nos EDcl no AgR no RE n. 1.281.774/SP, no qual a Primeira Turma do STF asseverou que as guardas municipais não estão autorizadas a, ultrapassando os limites próprios de uma prisão em flagrante, "realizar diligências investigativas ou diligências prévias voltadas à apuração de crimes" (Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Rel. p/ o acórdão Ministro Roberto Barroso, DJe 13/6/2022). 8. Em 25/8/2023, o STF julgou procedente a ADPF n. 995 (Rel. Ministro Alexandre de Moraes) para "CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO aos artigos 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO INCONSTITUCIONAIS todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública". Mais uma vez, a Corte reafirmou sua posição de que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública, mas, novamente, não lhes conferiu poderes idênticos aos dos órgãos policiais. 9. As teses ora sugeridas neste voto e antes assentadas no REsp n. 1.977.119/SP encontram respaldo e são plenamente consonantes com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, porque tanto naquele julgado quanto neste se admitiu expressamente que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza, ressalvado apenas que não têm a mesma amplitude de atuação das polícias, o que é amparado pela respeitada doutrina do próprio Ministro Alexandre de Moraes, relator da ADC n. 38/DF e da ADPF n. 995, para quem a Constituição Federal facultou aos Municípios a "constituição de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária" (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39 ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 940). 10. Os dois artigos de lei aos quais se deu interpretação conforme à Constituição na ADPF n. 995, aliás, confirmam essa compreensão: a) o art. 4º da Lei n. 13.022/2014 dispõe que "É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município"; b) o art. 9º da Lei n. 13.675/2018, por sua vez, estabelece que "É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal, pelos agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais integrantes estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica". 11. Cumpre lembrar, a propósito, que os bombeiros militares e os policiais penais, por exemplo, também integram o rol de órgãos de segurança pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de drogas. No mesmo sentido, cabe observar que, na ADI n. 6.621/TO (Rel. Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 23/6/2021), o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o rol do art. 144, caput, da CF não é taxativo e que é constitucional a criação, por ato normativo estadual, de Superintendência de Polícia Científica (formada por agentes de necrotomia, papiloscopistas e peritos oficiais) como órgão de segurança pública não vinculado administrativamente à polícia civil. Não se concebe, porém, que o referido julgado autorize agentes de necrotomia, papiloscopistas e peritos a sair pelas ruas fazendo patrulhamento ostensivo e revistando indivíduos suspeitos. 12. Na fundamentação do voto do eminente relator da ADPF n. 995, ainda constou que: "as Guardas Municipais têm entre suas atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal. Igualmente, a atuação preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais é atividade típica de órgão de segurança pública". O referido trecho repete a redação dos incisos II e III do art. 5º do Estatuto das Guardas Municipais (Lei n. 13.022/2014), segundo os quais: "Art. 5º São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais: [...] II - prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais; III - atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais. 13. Verifica-se, portanto, que, mesmo a proteção da população do município, embora se inclua nas atribuições das guardas municipais, deve respeitar as competências dos órgãos federais e estaduais e está vinculada ao contexto de utilização dos bens, serviços e instalações municipais, o que evidencia a total compatibili dade com a tese proposta no presente voto de que: "[...] salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários". 14. Não se pode confundir "poder de polícia" com "poder das polícias" ou "poder policial". "Poder de polícia" é conceito de direito administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado pela doutrina como "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público" (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2015, 158). Já o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas de direitos. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é necessariamente exercido por um órgão policial. 15. Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal. 16. Ao dispor, no art. 301 do CPP, que "qualquer do povo poderá [... ] prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito", o legislador, tendo em conta o princípio da autodefesa da sociedade e a impossibilidade de que o Estado seja onipresente, contemplou apenas os flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém. Distinta, no entanto, é a hipótese em que a situação de flagrante só é evidenciada depois de realizar atividades invasivas de polícia ostensiva ou investigativa, como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus semelhantes. 17. A adequada interpretação do art. 244 do CPP é a de que a fundada suspeita de posse de corpo de delito é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para autorizar a realização de busca pessoal, porque não é a qualquer cidadão que é dada a possibilidade de avaliar a presença dele; isto é, não é a todo indivíduo que cabe definir se, naquela oportunidade, a suspeita era fundada ou não e, por consequência, proceder a uma abordagem seguida de revista. Em outras palavras, mesmo se houver elementos concretos indicativos de fundada suspeita da posse de corpo de delito, a busca pessoal só será válida se realizada pelos agentes públicos com atribuição para tanto, a quem compete avaliar a presença de tais indícios e proceder à abordagem e à revista do suspeito. 18. Da mesma forma que os guardas municipais não são equiparáveis a policiais, também não são cidadãos comuns, de modo que, se, por um lado, não podem realizar tudo o que é autorizado às polícias, por outro, também não estão plenamente reduzidos à mera condição de "qualquer do povo". Trata-se de agentes públicos que desempenham atividade de segurança pública e são dotados do importante poder-dever de proteger os bens, serviços e instalações municipais, assim como os seus respectivos usuários. É possível e recomendável, dessa forma, que exerçam a vigilância, por exemplo, de creches, escolas e postos de saúde municipais, para garantir que não tenham sua estrutura danificada por vândalos, ou que seus frequentadores não sejam vítimas de furto, roubo ou algum tipo de violência, a fim de permitir a continuidade da prestação do serviço público municipal correlato a tais instalações. Nessa linha, guardas municipais podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade da corporação, sem que lhes seja autorizado atuar como verdadeira polícia para reprimir e investigar a criminalidade urbana ordinária. 19. Não é das guardas municipais, mas sim das polícias, como regra, a competência para investigar, abordar e revistar indivíduos suspeitos da prática de tráfico de drogas ou de outros delitos cuja prática não atente de maneira clara, direta e imediata contra os bens, serviços e instalações municipais ou as pessoas que os estejam usando naquele momento. 20. Poderão, todavia, realizar busca pessoal em situações excepcionais - e por isso interpretadas restritivamente - nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de suas atribuições. Vale dizer, salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários, o que não se confunde com permissão para desempenharem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária em qualquer contexto. 21. No caso dos autos, guardas municipais estavam em patrulhamento quando depararam com o paciente em "atitude suspeita". Por isso, decidiram abordá-lo e, depois de revista pessoal, encontraram certa quantidade de drogas no bolso traseiro e nas vestes íntimas dele, o que ensejou a sua prisão em flagrante delito. 22. Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art. 301 do CPP. Tanto que, conforme se depreende da narrativa fática descrita pelas instâncias ordinárias, só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso e das vestes íntimas do paciente é que se deu voz de prisão em flagrante para ele, e não antes. E, por não haver sido demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado. 23. Ordem concedida para confirmar a liminar deferida e declarar ilícitas as provas colhidas por meio da busca pessoal, bem como todas as delas decorrentes e, por consequência, absolver o réu, com fundamento no art. 386, II, do CPP, da condenação a ele imposta no Processo n. 1500093-71.2022.8.26.0080. (HC n. 830.530/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 27/9/2023, DJe de 4/10/2023.)