STJ. REsp 2.091.647-DF

Enunciado: A pronúncia consubstancia um juízo de admissibilidade da acusação, razão pela qual o Juiz precisa estar "convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação" (art. 413, caput, do Código de Processo Penal). O juízo da acusação (judicium accusationis) funciona como um importante filtro pelo qual devem passar somente as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (judicium causae). A desnecessidade de prova cabal da autoria para a pronúncia levou parte da doutrina, acolhida durante tempo considerável pela jurisprudência, a defender a existência do in dubio pro societate, princípio que alegadamente se aplicaria a essa fase processual. Todavia, o fato de não se exigir um juízo de certeza quanto à autoria nessa fase não significa legitimar a aplicação da máxima in dubio pro societate, que não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro, e admitir que toda e qualquer dúvida autorize uma pronúncia. Trata-se, apenas, de analisar os requisitos para a submissão do acusado ao tribunal popular sob o prisma dos standards probatórios, os quais devem seguir uma tendência geral ascendente/progressiva e representam, segundo a doutrina, "regras que determinam o grau de confirmação que uma hipótese deve ter, a partir das provas, para poder ser considerada provada para os fins de se adotar uma determinada decisão". Essa tendência geral ascendente e progressiva decorre, também, de uma importante função política dos standards probatórios, qual seja, a de distribuir os riscos de erro entre as partes (acusação e defesa), erros estes que podem ser tanto falsos positivos quanto falsos negativos. Quanto mais embrionária a etapa da persecução penal e menos invasiva, restritiva e severa a medida ou decisão a ser adotada, mais tolerável é o risco de um eventual falso positivo (atingir um inocente) e, portanto, é mais atribuível à defesa suportar o risco desse erro; por outro lado, quanto mais se avança na persecução penal e mais invasiva, restritiva e severa se torna a medida ou decisão a ser adotada, menos tolerável é o risco de atingir um inocente e, portanto, é mais atribuível à acusação suportar o risco desse erro. Como a pronúncia se situa na penúltima etapa (antes apenas da condenação) e se trata de medida consideravelmente danosa para o acusado, que será submetido a julgamento imotivado por jurados leigos, o standard deve ser razoavelmente elevado e o risco de erro deve ser suportado mais pela acusação do que pela defesa, ainda que não se exija um juízo de total certeza para submeter o réu ao Tribunal do Júri. Deve-se distinguir a dúvida que recai sobre a autoria, a qual, se existentes indícios suficientes contra o acusado, só será dirimida ao final pelos jurados, porque é deles a competência para o derradeiro juízo de fato da causa, da dúvida quanto à própria presença dos indícios suficientes de autoria (metadúvida, dúvida de segundo grau ou de segunda ordem), que deve ser resolvida em favor do réu pelo magistrado na fase de pronúncia. Também na pronúncia, ainda que com contornos em certa medida distintos, tem aplicação o in dubio pro reo, pois, segundo a doutrina, "submeter a julgamento popular um acusado, mesmo quando há dúvidas da existência do crime ou de indícios suficientes de crimes, constitui uma temeridade. Isso porque não apenas se viola flagrantemente os direitos e as garantias constitucionais, como também porque aumenta a possibilidade de erros judiciais, tendo em vista que a condenação do acusado poderá ocorrer mesmo se os parâmetros probatórios necessários para a condenação não sejam atingidos". À luz da efetividade e da utilidade do processo, é preciso, como regra, que toda decisão que implique o prosseguimento do feito em desfavor do imputado, com início de nova etapa processual, realize dois juízos: um diagnóstico (retrospectivo) sobre a suficiência do que se produziu até aquele momento; outro prognóstico sobre o que se projeta para a próxima etapa, a fim de verificar se será viável superá-la. Na pronúncia, esse juízo prognóstico sobre a etapa vindoura (julgamento em plenário e condenação) seria ainda mais importante em virtude da ausência de fundamentação da decisão dos jurados; ou seja, considerando que, na etapa final do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, o veredito é imotivado, adquire especial relevo o juízo prognóstico sobre a viabilidade da condenação. Isso esbarra, porém, em dois obstáculos impostos ao juiz togado: a) a impossibilidade de usurpar a competência constitucional dos jurados para o judicium causae e b) a necessidade de fundamentar de forma sucinta a decisão, sob pena de incorrer em excesso de linguagem, a teor do art. 413, § 1º, do CPP e influenciar negativamente os jurados contra o réu. Assim, o standard probatório para a decisão de pronúncia, quanto à autoria e à participação, situa-se entre o da simples preponderância de provas incriminatórias sobre as absolutórias (mera probabilidade ou hipótese acusatória mais provável que a defensiva), típico do recebimento da denúncia, e o da certeza além de qualquer dúvida razoável (BARD ou outro standard que se tenha por equivalente), necessário somente para a condenação. Exige-se para a pronúncia, portanto, elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado. A adoção desse standard desponta como solução possível para conciliar os interesses em disputa dentro das balizas do ordenamento. Resguarda-se, assim, a função primordial de controle prévio da pronúncia sem invadir a competência dos jurados e sem permitir que o réu seja condenado pelo simples fato de a hipótese acusatória ser mais provável do que a sua negativa.

Tese Firmada: Para a decisão de pronúncia, exige-se elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado, não se aplicando o princípio in dubio pro societate.

Questão Jurídica: Decisão de pronúncia. In dubio pro societate. Não aplicação. Standard probatório. Elevada probabilidade.

Ementa: RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO SIMPLES. DECISÃO DE PRONÚNCIA. IN DUBIO PRO SOCIETATE. NÃO APLICAÇÃO. STANDARD PROBATÓRIO. ELEVADA PROBABILIDADE. NÃO ATINGIMENTO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA OU PARTICIPAÇÃO. DESPRONÚNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A Constituição Federal determinou ao Tribunal do Júri a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida e os delitos a eles conexos, conferindo-lhe a soberania de seus vereditos. Entretanto, a fim de reduzir o erro judiciário (art. 5º, LXXV, CF), seja para absolver, seja para condenar, exige-se uma prévia instrução, sob o crivo do contraditório e com a garantia da ampla defesa, perante o juiz togado, que encerra a primeira etapa do procedimento previsto no Código de Processo Penal, com a finalidade de submeter a julgamento no Tribunal do Júri somente os casos em que se verifiquem a comprovação da materialidade e a existência de indícios suficientes de autoria, nos termos do art. 413, caput e § 1º, do CPP. 2. Assim, tem essa fase inicial do procedimento bifásico do Tribunal do Júri o objetivo de avaliar a suficiência ou não de razões para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação (judicium accusationis) funciona como um importante filtro pelo qual devem passar somente as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (judicium causae). A pronúncia consubstancia, dessa forma, um juízo de admissibilidade da acusação, razão pela qual o Juiz precisa estar "convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação" (art. 413, caput, do CPP). 3. A leitura do referido dispositivo legal permite extrair dois standards probatórios distintos: um para a materialidade, outro para a autoria e a participação. Ao usar a expressão "convencido da materialidade", o legislador impôs, nesse ponto, a certeza de que o fato existiu; já em relação à autoria e à participação, esse convencimento diz respeito apenas à presença de indícios suficientes, não à sua demonstração plena, exame que competirá somente aos jurados. 4. A desnecessidade de prova cabal da autoria para a pronúncia levou parte da doutrina - acolhida durante tempo considerável pela jurisprudência - a defender a existência do in dubio pro societate, princípio que alegadamente se aplicaria a essa fase processual. Todavia, o fato de não se exigir um juízo de certeza quanto à autoria nessa fase não significa legitimar a aplicação da máxima in dubio pro societate - que não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro - e admitir que toda e qualquer dúvida autorize uma pronúncia. Aliás, o próprio nome do suposto princípio parte de premissa equivocada, uma vez que nenhuma sociedade democrática se favorece pela possível condenação duvidosa e injusta de inocentes. 5. O in dubio pro societate, "na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se mostra compatível com regimes de perfil autocrático que absurdamente preconizam, como acima referido, o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário (!?!?), em absoluta desconformidade com a presunção de inocência [...]" (Voto do Ministro Celso de Mello no ARE n. 1.067.392/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 2/7/2020). Não pode o juiz, na pronúncia, "lavar as mãos" - tal qual Pôncio Pilatos - e invocar o "in dubio pro societate" como escusa para eximir-se de sua responsabilidade de filtrar adequadamente a causa, submetendo ao Tribunal popular acusações não fundadas em indícios sólidos e robustos de autoria delitiva. 6. Não há falar que a negativa de aplicação do in dubio pro societate na pronúncia implicaria violação da soberania dos vereditos ou usurpação da competência dos jurados, a qual só se inaugura na segunda etapa do procedimento bifásico. Trata-se, apenas, de analisar os requisitos para a submissão do acusado ao tribunal popular sob o prisma dos standards probatórios, os quais representam, em breve síntese, "regras que determinam o grau de confirmação que uma hipótese deve ter, a partir das provas, para poder ser considerada provada para os fins de se adotar uma determinada decisão" (FERRER BELTRÁN, Jordi. Prueba sin convicción: estándares de prueba y debido proceso. Madrid: Marcial Pons, 2021, p. 24) ou, nas palavras de Gustavo Badaró, "critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado fático como provado, sendo aceito como verdadeiro" (BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia judiciária e prova penal. 2 ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 241). 7. Segundo Ferrer-Beltrán, "o grau de exigência probatória dos distintos standards de prova para distintas fases do procedimento deve seguir uma tendência ascendente" (op. cit., p. 102), isto é, progressiva, pois, como explica Caio Massena, "não seria razoável, a título de exemplo, para o recebimento da denúncia - antes, portanto, da própria instrução probatória, realizada em contraditório - exigir um standard de prova tão alto quanto aquele exigido para a condenação" (MASSENA, Caio Badaró. Prisão preventiva e standards de prova: propostas para o processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 3, p. 1.631-1.668, set./dez. 2021). 8. Essa tendência geral ascendente e progressiva decorre, também, de uma importante função política dos standards probatórios, qual seja, a de distribuir os riscos de erro entre as partes (acusação e defesa), erros estes que podem ser tanto falsos positivos (considerar provada uma hipótese falsa, por exemplo: condenação de um inocente) quanto falsos negativos (considerar não provada uma hipótese verdadeira, por exemplo: absolvição de um culpado) (FERRER-BELTRÁN, op. cit., p. 115-137). Deveras, quanto mais embrionária a etapa da persecução penal e menos invasiva, restritiva e severa a medida ou decisão a ser adotada, mais tolerável é o risco de um eventual falso positivo (atingir um inocente) e, portanto, é mais atribuível à defesa suportar o risco desse erro; por outro lado, quanto mais se avança na persecução penal e mais invasiva, restritiva e severa se torna a medida ou decisão a ser adotada, menos tolerável é o risco de atingir um inocente e, portanto, é mais atribuível à acusação suportar o risco desse erro. 9. É preciso, assim, levar em conta a gravidade do erro que pode decorrer de cada tipo de decisão; ser alvo da abertura de uma investigação é menos grave para o indivíduo do que ter uma denúncia recebida contra si, o que, por sua vez, é menos grave do que ser pronunciado e, por fim, do que ser condenado. Como a pronúncia se situa na penúltima etapa (antes apenas da condenação) e se trata de medida consideravelmente danosa para o acusado - que será submetido a julgamento imotivado por jurados leigos -, o standard deve ser razoavelmente elevado e o risco de erro deve ser suportado mais pela acusação do que pela defesa, ainda que não se exija um juízo de total certeza para submeter o réu ao Tribunal do Júri. 10. Deve-se distinguir a dúvida que recai sobre a autoria - a qual, se existentes indícios suficientes contra o acusado, só será dirimida ao final pelos jurados, porque é deles a competência para o derradeiro juízo de fato da causa - da dúvida quanto à própria presença dos indícios suficientes de autoria (metadúvida, dúvida de segundo grau ou de segunda ordem), que deve ser resolvida em favor do réu pelo magistrado na fase de pronúncia. Vale dizer, também na pronúncia - ainda que com contornos em certa medida distintos - tem aplicação o in dubio pro reo, consectário do princípio da presunção de inocência, pedra angular do devido processo legal. 11. Assim, o standard probatório para a decisão de pronúncia, quanto à autoria e a participação, situa-se entre o da simples preponderância de provas incriminatórias sobre as absolutórias (mera probabilidade ou hipótese acusatória mais provável que a defensiva) - típico do recebimento da denúncia - e o da certeza além de qualquer dúvida razoável (BARD ou outro standard que se tenha por equivalente) - necessário somente para a condenação. Exige-se para a pronúncia, portanto, elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado. 12. A adoção desse standard desponta como solução possível para conciliar os interesses em disputa dentro das balizas do ordenamento. Resguarda-se, assim, a função primordial de controle prévio da pronúncia sem invadir a competência dos jurados e sem permitir que o réu seja condenado pelo simples fato de a hipótese acusatória ser mais provável do que a sua negativa. 13. Na hipótese dos autos, segundo o policial Eduardo, no dia dos fatos, ele ouviu disparos de arma de fogo e, em seguida, uma moradora do bairro, onde ele também residia, bateu à sua porta e informou que os atiradores estavam em um veículo Siena de cor preta. O policial, então, saiu com um colega de farda para acompanhar e abordar o veículo, o que foi feito. Na ocasião, estavam no carro o recorrente (condutor) e os corréus (passageiros). Em revista, foram encontradas armas de fogo com os corréus e, na delegacia, eles confessaram o crime e confirmaram a versão do recorrente de que ele havia sido apenas solicitado como motorista para levá-los até o local, esperar em uma farmácia por alguns minutos e trazê-los de volta, e não tinha relação com os fatos. Uma testemunha sigilosa e o irmão do recorrente foram ouvidos e afirmaram que ele trabalhava há cerca de cinco anos com transporte de passageiros. 14. Não há nenhum indício robusto de que o recorrente haja participado conscientemente do crime, porque: a) nenhum objeto ilícito foi apreendido com ele; b) nenhum elemento indicativo de que ele conhecesse ou tivesse relação com os corréus nem com a vítima foi apresentado; c) não consta que ele haja tentado empreender fuga dos policiais na condução do veículo quando determinada a sua abordagem d) os corréus negaram conhecer o acusado e afirmaram que ele era apenas motorista; e) as testemunhas de defesa confirmaram que o acusado trabalhava com transporte de passageiros. Ademais, a confirmar a fragilidade dos indícios existentes contra ele, o recorrente - ao contrário dos corréus - foi solto na audiência de custódia e o Ministério Público inicialmente nem sequer ofereceu denúncia em seu desfavor porque entendeu que ainda não tinha elementos suficientes para tanto. Só depois da instrução e da pronúncia dos corréus é que, mesmo sem nenhuma prova nova, decidiu denunciá-lo quando instado pelo Magistrado a se manifestar sobre a situação do acusado. 15. Uma vez que não foi apontada a presença de indícios suficientes de participação do recorrente no delito que pudessem demonstrar, com elevada probabilidade, o seu envolvimento no crime, a despronúncia é medida de rigor. 16. Recurso especial provido para despronunciar o acusado. (REsp n. 2.091.647/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 3/10/2023.)