STJ. RMS 70.679-MG

Enunciado: Cinge-se a controvérsia a definir se a atuação da Defensoria Pública na assistência às crianças vítimas de violência representa sobreposição inconstitucional às funções desempenhadas pelo Ministério Público. A atuação do Parquet como substituto processual da vítima na ação penal pública não se confunde com a atuação da Defensoria Pública no acompanhamento e na orientação jurídica de crianças e adolescentes em situação de violência nem pode suplantá-la. Tal atividade não constitui, por si só, desempenho do múnus de curadoria especial ou de assistência à acusação, mas atividade jurídica própria, na condição de "custos vulnerabilis", que é o núcleo da atual identidade constitucional da Defensoria Pública. A Lei Complementar n. 80/94 expressamente atribui às defensoras e aos defensores públicos a função de defender os interesses individuais e coletivos das crianças e adolescentes. Especificamente quando estas crianças e adolescentes são vítimas de abusos, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, o inciso XVIII do art. 4.º da Lei Complementar n. 80/94 determina que a Defensoria Pública deve atuar na preservação e reparação dos seus direitos, propiciando acompanhamento e atendimento interdisciplinar. A necessidade de atuação da Defensoria Pública no atendimento integral às crianças e aos adolescentes vítimas de violência tornou-se ainda mais evidente com o advento da Lei n. 13.431/2017, que determinou uma série de medidas que devem ser adotadas pelo Estado nessas situações, como o acesso da criança e do adolescente à assistência jurídica qualificada, a qual está no âmbito de atuação da Defensoria Pública. A conduta de intimar defensores públicos para comparecer aos atos de escuta especializada em favor das vítimas de violência, bem como a postura colaborativa dos defensores, que comparecem aos atos processuais e reúnem informações para propiciar a integral assistência jurídica a este grupo vulnerável concretizam a integração operacional entre os órgãos do sistema justiça e asseguram o acesso aos serviços da Defensoria Pública, nos termos dos arts. 88, incisos V e VI, e 141, do ECA. A integração operacional entre os órgãos do sistema de justiça tem como um de seus objetivos evitar que a ineficiência de qualquer um desses órgãos comprometa o atendimento célere e diligente que deve ser dispensado às crianças e adolescentes vítimas de violência. Através da colaboração mútua, eventuais falhas de uma instituição podem ser supridas pela atuação de outra, guiando-se sempre pela premissa de que deve ser resguardado, com absoluta prioridade, o melhor interesse da criança. Não é eficiente impor ao Juízo de origem que somente intime defensores públicos para comparecer aos atos quando houver pedido prévio e expresso da vítima. A intimação de ofício proporciona melhores condições de acesso à assistência jurídica integral ofertada pelos defensores públicos, que terão a oportunidade de esclarecer de forma mais efetiva à vítima as atribuições da Defensoria Pública e os serviços colocados à sua disposição. De outra parte, a presença da Defensoria Pública proporciona maior celeridade na adoção de medidas de proteção, o que está em linha com o dever de se conferir absoluta prioridade à defesa das crianças e adolescentes (art. 227, caput, da CF). Aplica-se, por analogia, o disposto nos arts. 27 e 28 da Lei n. 11.340/2003, que asseguram à mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. Uma vez que as crianças e adolescentes vítimas de violência integram um grupo socialmente vulnerável e se submetem ao microssistema de proteção de vulneráveis, deve ser assegurado também a elas o acesso aos serviços de Defensoria Pública, mediante atendimento específico e humanizado, em sede policial e judicial, aplicando-se a máxima de que onde há o mesmo fundamento deve haver a mesma solução jurídica (ubi eadem ratio ibi idem jus).

Tese Firmada: A Defensoria Pública pode ser intimada, de ofício, pelo Juízo para prestar assistência às crianças e aos adolescentes vítimas de violência, nos procedimentos de escuta especializada, sem que isso represente sobreposição inconstitucional às funções do Ministério Público.

Questão Jurídica: Crimes contra crianças e adolescentes. Intimação da Defensoria Pública para prestar assistência às vítimas, de ofício. Presença em audiências de depoimentos especiais. Ausência de ilegalidade. Atuação em conformidade com as funções constitucionais e legais da Defensoria Pública. Direito da vítima à assistência jurídica integral. Inexistência de confusão com as atribuições do Ministério Público. Defesa dos direitos individuais e coletivos das crianças e adolescentes.

Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. INTIMAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA, DE OFÍCIO, PARA PRESTAR ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS. PRESENÇA EM AUDIÊNCIAS DE DEPOIMEN TOS ESPECIAIS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. ATUAÇÃO EM CONFORMIDADE COM AS FUNÇÕES CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA. DIREITO DA VÍTIMA À ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL. INEXISTÊNCIA DE CONFUSÃO COM AS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA QUE ULTRAPASSA A AÇÃO PENAL. PROMOÇÃO DA EDUCAÇÃO PARA O PLENO EXERCÍCIO DOS DIREITOS. DEFESA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES. DEVER DE ACOMPANHAMENTO E ATENDIMENTO INTERDISCIPLINAR DA VÍTIMA. INTEGRAÇÃO OPERACIONAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 28 DA LEI N. 11.343/03. MICROSSISTEMA DE PROTEÇÃO DE VULNERÁVEIS. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. 1. O Ministério Público do Estado de Minas Gerais impetrou mandado de segurança contra a conduta adotada pelo Juízo da Vara Especializada em Crimes Cometidos Contra Crianças e Adolescentes da Comarca de Belo Horizonte/MG, que passou a intimar, de ofício, membros da Defensoria Pública estadual para assistir às crianças e adolescentes vítimas de violência nos procedimentos de escuta especializada. Segundo informações prestadas pelo Juízo de origem, a presença de defensores públicos nestes atos processuais tem sido "uma lufada de alento para tantas crianças e tantos adolescentes que necessitam dessa proteção", pois os defensores utilizam as informações obtidas com a escuta especializada para propor as medidas de proteção e outras diligências necessárias no Juizado da Infância e Juventude Cível daquela mesma comarca. 2. Nos termos do art. 134, caput, da Constituição Federal, a presença da Defensoria Pública nos espaços judiciais e extrajudiciais não se restringe à atividade de representação. O dever de promoção da educação para o pleno exercício dos direitos, especialmente dos direitos humanos de grupos socialmente vulneráveis, já seria fundamento apto a justificar a legitimidade da Defensoria Pública para atuar junto à Vara Especializada em Crimes Cometidos Contra Crianças e Adolescentes, a fim de propiciar às vítimas destes graves delitos a orientação jurídica plena de que elas necessitam e à qual possuem direito. 3. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp n. 1.192.577/RS, de minha relatoria, já teve a oportunidade de examinar os limites da atuação institucional da Defensoria Pública, oportunidade na qual acertadamente rechaçou a visão reducionista que restringia o papel desta instituição à defesa dos hipossuficientes econômicos, esclarecendo que os "necessitados" sob sua proteção não são apenas os economicamente vulneráveis, mas igualmente os social e juridicamente vulneráveis. 4. Além do dever de promover e difundir a educação para o exercício dos direitos, a Lei Complementar n. 80/93 expressamente atribui às defensoras e defensores públicos a função de defender os interesses individuais e coletivos das crianças e adolescentes. Especificamente quando estas crianças e adolescentes são vítimas de abusos, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, o inciso XVIII do art. 4.º da Lei Complementar n. 80/93 determina que a Defensoria Pública deve atuar na preservação e reparação do seus direitos, propiciando acompanhamento e atendimento interdisciplinar. 5. A necessidade de atuação da Defensoria Pública no atendimento integral que deve ser dispensado às crianças e aos adolescentes vítimas de violência tornou-se ainda mais evidente com o advento da Lei n. 13.431/17, que determinou uma série de medidas que devem ser adotadas pelo Estado nessas situações. Entre os direitos assegurados pela referida legislação consta expressamente o acesso da criança e do adolescente à assistência jurídica qualificada, a qual, diante do contexto de vulnerabilidade, está no âmbito de atuação da Defensoria Pública. 6. A pretensão do Recorrente de impedir ou dificultar a atuação da Defensoria Pública na assistência de crianças e adolescentes vítima de violência não constitui direito liquido e certo, revelando-se, ao revés, manifestamente contra legem. A diligente conduta do Juízo singular, ao intimar defensores públicos para comparecer aos atos de escuta especializada em favor das vítimas de violência, bem como a postura colaborativa dos defensores, que comparecem aos atos processuais e reúnem informações para propiciar a integral assistência jurídica a este grupo vulnerável, longe de constituírem qualquer ilegalidade, concretizam a integração operacional entre os órgãos do sistema justiça e asseguram o acesso aos serviços da Defensoria Pública, nos termos dos arts. 88, inciso V e VI, e 141 do ECA. 7. Aplica-se ao caso, por analogia, o disposto nos arts. 27 e 28 da Lei n. 11.343/03, que assegura à mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. Uma vez que as crianças e adolescentes vítimas de violência integram um grupo socialmente vulnerável e se submetem ao microssistema de proteção de vulneráveis, nos termos do art. 6.º, parágrafo único, da Lei n. 11.431/17, deve ser assegurado também a elas o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial. 8. Constatado que a assistência às crianças e aos adolescentes vítimas de violência constitui atividade inserida no âmbito de atribuições da Defensoria Pública, é inadmissível que o Ministério Público ou o Poder Judiciário pretendam determinar quais são as prioridades institucionais nas lotações deste órgão dotado de autonomia funcional e administrativa. Conforme a jurisprudência da Corte Suprema, em razão da capacidade de autogoverno constitucionalmente atribuída à Defensoria Pública, a decisão sobre a lotação dos defensores públicos na prestação de assistência jurídica integral e gratuita às pessoas necessitadas deve ser tomada pelos órgãos de direção da entidade. 9. Recurso ordinário em mandado de segurança desprovido. (RMS n. 70.679/MG, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 26/9/2023, DJe de 7/11/2023.)