STJ. REsp 2.083.823-DF

Enunciado: O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 28-A do CPP, por meio da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), com o inegável propósito de possibilitar soluções consensuais para crimes de menor gravidade, reduzindo o número de processos penais ao mesmo tempo em que propicia maior celeridade à justiça criminal. O ANPP veio como forma de mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública diante da existência de lastro suficiente de autoria e materialidade para oferecimento da denúncia, assim como já acontece na transação penal, instituto cabível para as infrações de menor potencial ofensivo (art. 76 da Lei n. 9.099/1995). Pode-se asseverar, também, a mitigação ao princípio da indisponibilidade, segundo o qual, em linhas gerais, não é dado ao Ministério Público desistir no curso da ação penal, sob a perspectiva de aplicação do ANPP aos processos em curso ao tempo do início da vigência do ANPP no ordenamento jurídico (Lei n. 13.964/2019, em 23/1/2020), consoante decidido no julgamento do Habeas Corpus n. 185.913/DF pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, o CPP não disciplinou expressamente a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal no âmbito da ação penal privada, o que gerou controvérsia doutrinária e jurisprudencial. A despeito da lacuna normativa, a extensão por analogia do ANPP à ação penal privada deve ser admitida, pelos seguintes fundamentos: a) O interesse público subjacente à ação penal privada - Ainda que o direito de ação seja atribuído ao ofendido, a persecução penal continua sendo uma manifestação do ius puniendi estatal, sendo inalienável ao particular. O querelante não age em nome de um direito material próprio, mas sim no exercício de um direito de substituição processual. b) O princípio da isonomia entre réus de ações penais públicas e privadas - Negar o ANPP a crimes de ação penal privada, nos casos em que todos os requisitos legais estão preenchidos, significaria conceder tratamento mais gravoso a acusados que se encontram em situações fáticas idênticas, o que violaria o princípio da igualdade substancial. c) O caráter restaurativo e desjudicializante da política criminal contemporânea - O ANPP visa a garantir uma justiça penal mais eficiente e menos punitivista, fomentando a reparação do dano e prevenindo o encarceramento desnecessário. Se há espaço para essa abordagem na ação penal pública, com maior razão deve ser admitida na ação penal privada, que, por sua própria natureza, confere ao ofendido um juízo de conveniência sobre a persecução penal. Dessa forma, a ausência de previsão expressa não pode ser interpretada como proibição, devendo-se reconhecer a aplicação do acordo de não persecução penal na ação penal privada por analogia in bonam partem. Quanto a legitimidade para a propositura do acordo, ainda que se reconheça a titularidade da ação penal privada pelo ofendido, a doutrina e a jurisprudência têm apontado que esse direito não é absoluto e deve ser exercido dentro dos limites da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o querelante não pode recusar arbitrariamente um acordo de não persecução penal, pois a persecução penal não pode ser utilizada como um instrumento de vingança privada. Nesse sentido, o Ministério Público, como custos legis, pode e deve atuar subsidiariamente nos seguintes casos: a) Recusa injustificada do querelante - Quando o querelante, sem fundamentação razoável, se recusar a ofertar o ANPP, ainda que estejam preenchidos os requisitos legais, o Ministério Público deve intervir para impedir que a persecução penal se torne um instrumento de abuso. b) Silêncio ou inércia do querelante - Na hipótese de omissão do querelante diante da proposta de ANPP, o Ministério Público pode supletivamente ofertá-la, garantindo que o processo penal atenda a uma finalidade justa e racional. c) Propostas abusivas e desproporcionais - Caso o querelante imponha exigências irrazoáveis ou desproporcionais para a celebração do acordo, inviabilizando sua efetivação, caberá ao Ministério Público intervir para garantir que os parâmetros legais sejam respeitados. A função do Ministério Público, nesse contexto, não se confunde com a titularidade da ação penal. Sua atuação ocorre de forma supletiva e excepcional, apenas para garantir que o instituto do ANPP seja aplicado de maneira justa e eficaz. Note-se que parte da resistência à tese da legitimidade supletiva do Ministério Público decorre do entendimento consolidado deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em ações penais privadas, a transação penal só pode ser proposta pelo querelante. Contudo, o acordo de não persecução penal possui natureza jurídica distinta da transação penal, o que justifica uma abordagem diferenciada. Assim, a jurisprudência do STJ sobre a transação penal não pode ser aplicado automaticamente ao ANPP, sob pena de se comprometer a coerência do sistema penal. Quanto ao momento para oferecer o ANPP, por interpretação sistemática ao contido no art. 28-A do CPP e seus parágrafos, especialmente o § 8º e o § 10, tem-se que, em regra, é anterior ao oferecimento da denúncia. Na prática, porém, a certeza do investigado quanto à falta de propositura do ANPP ocorre quando citado para responder à acusação. Assim, precedentes desta Corte admitem que na fase da resposta à acusação, primeiro momento processual para manifestação da defesa do acusado, o agora denunciado possa manifestar-se pelo cabimento do acordo. Sucede que a definição dos momentos processuais para o acordo de não persecução penal na ação penal privada perpassa a interpretação sistemática do artigo 28-A do Código de Processo Penal com os artigos 105 e 106 do Código Penal e o artigo 51 do CPP, que consagram o princípio da disponibilidade. A ação penal privada rege-se pelo princípio da oportunidade, conferindo ao querelante ampla margem de disponibilidade sobre a persecução penal, podendo, inclusive, renunciar ao direito de queixa, perdoar o querelado ou realizar composição civil em qualquer fase do processo. Se o querelante pode exercer atos ainda mais abrangentes, como desistir integralmente da persecução penal, segue-se que também pode firmar um acordo de não persecução penal, ato de menor impacto dentro da mesma esfera de atuação, até o trânsito em julgado, pois este representa uma alternativa intermediária que não extingue de plano o direito de punir, mas apenas o condiciona ao cumprimento de determinadas obrigações. Dessa forma, não há justificativa lógica ou principiológica para restringir a possibilidade do querelante formalizar um ANPP em momento posterior ao recebimento da queixa. Ressalte-se que essa interpretação vale para as iniciativas do querelante, pois a atuação do Ministério Público na ação penal privada é excepcional, limitando-se à fiscalização da ordem jurídica e intervenção supletiva quando houver inércia do autor da queixa-crime. Nessa conformidade, a legitimidade ministerial para propor o ANPP decorre do artigo 45 do CPP, que lhe confere função de custos legis, mas essa atuação deve ocorrer na primeira oportunidade processual, sob pena de preclusão. Esse entendimento assegura a coerência do sistema acusatório e a primazia do querelante na condução da ação penal privada, sem esvaziar o papel fiscalizador do Ministério Público.

Tese Firmada: É cabível acordo de não persecução penal em ação penal privada, mesmo após o recebimento da denúncia, tendo o Ministério Público legitimidade supletiva para propor a medida quando houver inércia ou recusa infundada do querelante.

Questão Jurídica: A questão em discussão consiste em saber se é cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal em ação penal privada após o recebimento da queixa-crime, e se o Ministério Público possui legitimidade para propor o ANPP em substituição ao querelante.

Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL EM AÇÃO PENAL PRIVADA. ANALOGIA. CABIMENTO. LEGITIMIDADE SUPLETIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO IMPROVIDO. I. Caso em exame1. Recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) que julgou improcedente reclamação criminal, validando a oferta de acordo de não persecução penal (ANPP) pelo Ministério Público em ação penal privada, após o recebimento da queixa-crime. 2. Fato relevante. A queixa-crime foi proposta e recebida já na vigência do art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP), sem que o querelante tenha ofertado o ANPP no ajuizamento da queixa-crime, nem o Ministério Público antes do recebimento da inicial. 3. As decisões anteriores. O TJDFT entendeu que, diante da omissão do querelante, a proposta de ANPP pelo Ministério Público, na qualidade de custos legis, é legítima e oportuna, mesmo após o recebimento da queixa-crime. II. Questão em discussão4. A questão em discussão consiste em saber se é cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal em ação penal privada após o recebimento da queixa-crime, e se o Ministério Público possui legitimidade para propor o ANPP em substituição ao querelante. 5. A questão também envolve a análise da preclusão do direito de oferta do ANPP após o recebimento da queixa-crime e a legitimidade do Ministério Público para atuar como custos legis em ações penais privadas. III. Razões de decidir6. O ANPP é cabível em ações penais privadas, pois não há vedação legal expressa, e a justiça penal contemporânea exige a ampliação dos mecanismos de justiça negociada. 7. O querelante não possui poder absoluto para recusar o ANPP, devendo sua negativa ser devidamente fundamentada, sob pena de abuso do direito de ação. 8. O Ministério Público possui legitimidade supletiva para propor o ANPP, nos casos em que a negativa do querelante for injustificada, abusiva ou desproporcional. 9. A distinção entre ANPP e transação penal impede a aplicação automática da jurisprudência restritiva do STJ, garantindo a coerência do sistema de justiça penal. 10. No caso concreto, a iniciativa do ANPP pelo Ministério Público ocorreu no momento processualmente adequado, sem que se possa falar em preclusão, considerando a peculiaridade do caso. IV. Dispositivo e tese11. Recurso improvido. Tese de julgamento: "1. O ANPP é cabível em ações penais privadas, mesmo após o recebimento da queixa-crime, desde que presentes os requisitos legais. 2. O Ministério Público possui legitimidade supletiva para propor o ANPP em ação penal privada, quando houver inércia ou recusa infundada do querelante. 3. A distinção entre ANPP e transação penal justifica uma abordagem diferenciada, não se aplicando automaticamente a jurisprudência restritiva do STJ sobre transação penal". Dispositivos relevantes citados: CPP, art. 28-A; CPP, art. 45; CPP, art. 51.Jurisprudência relevante citada: STF, HC 185.913/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes; STJ, AgRg no RHC 188.699/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca; STJ, AgRg no REsp 2.086.519/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. (REsp n. 2.083.823/DF, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 11/3/2025, DJEN de 18/3/2025.)